A pobreza é o traço mais característico da população assistida pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa que, neste concelho, substitui a Segurança Social na administração das políticas de acção social: 85 por cento vive abaixo do limiar da pobreza e muitos não viriam à tona com emprego.
A caracterização foi feita por uma equipa de investigadores do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa e do Centro de Estudos de Serviço Social e Sociologia da Universidade Católica, num estudo que é apresentado, hoje de manhã, na Torre do Tombo, na conferência Ser pobre em Lisboa: Reinventar as políticas sociais.
Em Setembro e Outubro de 2009, 600 utentes da Santa Casa foram inquiridos: 42,5 por cento estavam desempregados, dos quais muito poucos se ocupavam com a qualificação, apesar de mais de metade nem sequer ter a escolaridade obrigatória. E isto levava os investigadores a questionar: haverá articulação suficiente entre políticas de emprego, políticas de educação/formação e políticas sociais?
Três perfis de pobreza
Os investigadores optaram por desenhar três perfis "ideais-tipo": os "dependentes", os "desafiliados" e os "em trânsito na busca de oportunidades". Os "dependentes" experimentam grande vulnerabilidade; para quem acumula tão "poucas condições de saí-da da pobreza", as políticas públicas têm "um papel fundamental": encaixam aqui, como uma luva, pessoas em idade avançada e/ou os doentes. Os "desafiliados" estabilizaram na precariedade e têm "poucas perspectivas de construção de projectos". Por regra, "tiveram situações de vida difíceis", o seu "processo de individualização está incompleto". E isto, amiúde, mistura-se com alguma doença emocional ou psíquica. Nos "em trânsito", a vulnerabilidade tende a resultar de "acidentes de percurso já antigos, mas onde as boas oportunidades garantiram o exercício do processo de individuação e a permanência de uma crença em si e na sua capacidade de resolução de problemas".
O público da Santa Casa está mais próximo dos dois primeiros perfis - "para quem o mercado de trabalho não tem lugar ou a quem nem a pertença ao mercado de trabalho retira da pobreza", lê-se no estudo. De um modo geral, quem recorre aos serviços sociais são "pessoas fracamente escolarizadas que, por não terem tido oportunidade de desenvolvimento das capacidades, acabam não tendo capacidade para aproveitar (ou atrair) eventuais oportunidades".
Não se pense numa massa homogénea a quem serve a mesma receita. Uma análise mais fina dos dados revelou pontos de diferenciação. Os investigadores chegaram então a quatro segmentos: os "desempregados activáveis", as "mulheres-âncora", os "idosos pauperizados" e os "doentes vulneráveis". Só os primeiros são compatíveis "com uma lógica convencional de inserção pelo trabalho".
"Para o que parece ser uma larga maioria dos públicos da Misericórdia a inserção pelo trabalho não aparenta ser uma proposta nem realista, nem adequada", lê-se ainda no estudo a que o PÚBLICO teve acesso. "Constata-se, de facto, que a construção de um ethos pelo trabalho está presente apenas numa parte do segmento dos desempregados e dos trabalhadores pobres. Para os restantes, o trabalho representa uma função utilitária a que vão intermitentemente recorrendo para fazer face às necessidades mais prementes. Esta disposição acaba também por ser causa e consequência de um mercado em que as oportunidades com qualidade rareiam e que potencia, efectivamente, este tipo de relação de intermitência."
Maioria vive em sofrimento
Os autores ressalvam "o caso de algumas pessoas com problemas de saúde para quem a existência e bom funcionamento de um mercado de emprego protegido poderia ser ajustada". Não querem, porém, "que se pense que uma alternativa de inserção no mercado de trabalho está isenta de utilidade social". E dão o exemplo das domésticas, as tais mulheres-âncora, "que não estando presentes na esfera produtiva, desempenham uma função tradicional e de grande valor que passa pela organização doméstica, pelo cuidado dos dependentes".
Os assistidos pela Santa Casa estão longe de ser felizes. A maioria vive em sofrimento - físico, mental, moral. Mais de metade está pouco ou nada satisfeito, assume que a sua vida não coincide com as expectativas, julga não ter tido oportunidade de demonstrar o seu valor. Nos que permanecem desempregados, o sofrimento surge dessa condição e da incerteza quanto ao futuro. Nos impedidos de entrar no mercado de trabalho por razões de saúde, há forte incidência de depressões e até de tendências suicidas.
Na opinião dos investigadores, "dois factores estratégicos estruturam, hoje, um novo pensamento sobre as políticas sociais. Trata-se, por um lado, dos impactos da crise económica e, por outro, de uma revolução silenciosa que tem a ver com o envelhecimento da população". E é a partir daqui que se tem de repensar as políticas sociais.
Fonte: Público
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