Já lá vão sete anos desde a última entrevista de D. Manuel Martins, Bispo Emérito de Setúbal, ao Solidariedade, mas parece que foi ontem. Para esta conversa, marcou encontro exactamente no mesmo sítio, na casa onde mora, junto ao estabelecimento prisional de Custóias, recebeu-me com a mesma simpatia e, valha a verdade, não se nota que por ele tenha passado tanto tempo.
- Já vim à porta várias vezes a ver se o via. É que eu levanto-me muito cedo, já dei o meu passeio de bicicleta e contava consigo mais cedo, conforme tinha avisado.
Esfarrapei uma desculpa enquanto fazia contas de cabeça. Devia ter-se levantado por volta das cinco ou seis da manhã. Pratica a mesma jovialidade, usa da mesma forma a boa disposição e a simpatia e não dá descanso à lucidez inteligente com que conduz todas as conversas.
O escritório quase estava igual. Mais desarrumado, talvez. Na parede do fundo o mesmo retrato pintado no período em que lhe chamavam bispo vermelho, num tempo em que os governantes tinham medo das denúncias que D. Manuel Martins fazia do que se passava em Setúbal. Os livros, papéis, objectos, ilustrações e imagens tomaram conta do espaço, sem preocupações com a ordem.
D. Manuel Martins prescinde do lugar principal à secretária, por baixo do quadro do bispo que foi, e escolhe o conforto do sofá, mesmo à entrada, mais de acordo com o homem de 84 anos que agora é. A mim ofereceu-me uma cadeira que colocou virada para ele, em plano superior, e foi como se dissesse: “vamos a isto”.
Coloquei o gravador numa das abas do cadeirão almofadado e comecei a gravar.
- Cuidado com o gravador. As minhas mãos são asas…
Assim é. D. Manuel Martins fala com as mãos e pelos cotovelos, se me permitem a expressão. É um conversador incansável. Quase não me deixou chegar ao fim da primeira pergunta: Acha que o país hoje é uma espécie de Setúbal em ponto grande?
- Já me têm perguntado isso. Tem alguns traços comuns. Trata-se de uma crise económica, com vertentes sociais e morais. A crise de Setúbal foi localizada, mas tinha umas características muito mais cruéis do que a que estamos a viver no país inteiro. A palavra que mais se pronunciava era a palavra fome. As famílias eram uma população de remediada para baixo. Os empresários vinham de fora e havia ricos, como em todo o lado. 70 por cento das pessoas não eram de lá, foram à procura de trabalho e foram vítimas do encerramento sucessivo de fábricas, sobretudo na área da metalomecânica. Para trás deixaram os seus quintais e as suas capoeiras e outros recursos da aldeia. Ali, em Setúbal, viviam privadas disso. Eu não considerava aquela gente emigrante, mas tinha o espírito de emigrante. Passavam por pessoas bem sucedidas. Não admitiam que as famílias pensassem outra coisa. Tantas situações me bateram à porta e eu tentava esse aconselhamento. E diziam-me: “que nunca cheguem a saber”.
Era o desprestígio daqueles que, tendo saído de casa, não conseguiram vencer na vida. Toda a gente foi atingida pelo desemprego, salários atrasados, encerramentos, despedimentos sem indemnizações…aquilo foi um pavor. De facto, julgo que lá foi pior. E a reacção foi muito violenta e mais forte. Portugal está a reagir. A Igreja, os partidos políticos, grupos, há várias áreas onde essas reacções se verificam, mas lá era todo o distrito um clamor. Quem lançou o primeiro clamor mais alto, desesperado, atrevido, indignado, foi a Igreja e eu comparo esta situação com a situação actual e vejo - com muita pena, não é para enaltecer a igreja de Setúbal em relação à actual -, mas uma das coisas que me dói, é que faltam sinais. Os bispos clamam, denunciam, promovem acções, mas a mim parece-me que, apesar de tudo isto, ainda faltam os sinais.
Nós pedimos que poupem, que mudem de vida, que dêem uma parte, mas continuamos sempre com o nosso. Eu estava em pleno exercício da minha missão quando o papa João Paulo II publicou um documento notável, uma Encíclica notável em que nos pedia a nós, responsáveis da igreja, que em vez de palavras bonitas nos desfizéssemos do material, que déssemos o salto e que vendêssemos os bens que a igreja e congregações religiosas possuem, que estão cheias de bens, quintas, casas, residências paroquiais abandonadas, tanta coisa… o Santo Padre falava no ouro que temos e que não presta para nada, não tem nem valor histórico nem artístico, e que está pendurado nos santinhos, festejados a cada ano. Até parece mais uma idolatria do que um acto religioso. Aquilo tem alguma coisa a ver com a fé? Não tem. Os sinais são mais importantes do que as palavras. Como diziam os santos padres dos primeiros séculos, o dinheiro só se legitima na Igreja pelos pobres. Infelizmente, a igreja transformou-se mais em empresa do que em testemunho.
Eu seguia-lhe o pensamento sem coragem para interromper ou provocar alguma mudança de linha. De vez em quando lançava um olhar rápido ao gravador para me certificar que estava a funcionar e garantir que os gestos esvoaçantes do meu interlocutor não o abatiam do sofá onde estava pousado.
- Estou a escandalizá-lo…. - Apanhou-me desprevenido com a observação. Balbuciei um não que confirmava mais a sua suspeita do que revelava a minha delícia na conversa. Mas, mesmo que considerasse que estava a escandalizar-me não recuou.
- A Igreja é uma instituição, precisa de meios para se expandir, mas, para além do estritamente indispensável, que não tenha mais nada. Essa, julgo eu, é a vontade de Jesus Cristo: “Ide e não leveis nada convosco…”
Julguei que a pausa era o sinal para que colocasse mais uma pergunta. Saiu-me uma observação: A capacidade de dar e dar o exemplo faz sentido hoje…
É o de dar-se, responde de pronto. E contou-me uma história que começou como todas as histórias: “Uma vez quando eu era pároco de Cedofeita…” e desfiou recordações de quando D. Manuel Vieira Pinto, Bispo de Nampula, missionário do movimento Mundo Melhor, que Pio XII quis levar à Igreja inteira, esteve em missão na paróquia para a transformar numa verdadeira família de Deus, uma habilidade pastoral, com uma organização capilar, no que respeita à caridade e à partilha, atingindo toda gente. Depois da pregação houve um padre que a levou à prática e, um dia, contou que uma senhora paroquiana, de sangue azul, que estava sempre pronta para dar e participar nas campanhas, se sentiu incomodada por estar sempre a ouvir a mesma prédica. “Eu tenho dado tanto e o senhor padre continua a dizer que é preciso dar mais…”
- Sabe o que o padre respondeu? - pergunta-me D. Manuel Martins sem me deixar retorquir. - A senhora tem dado muito, mas ainda não se deu a si.
- É fácil dar esmolas, mas é difícil dar-se. - Conclui o bispo cada vez mais encafuado no sofá verde. Tento fazer dele o centro da conversa provocando-lhe um evidente desconforto. O tom de voz baixou…
- É o seu caso. Continua a dar-se?
- Bem… foi sempre o meu ADN. Agora tenho uma intervenção bem menos intensa. Falta-me o púlpito. Refugio-me mais em mim. Quando se renuncia, um dos textos a apresentar ao Santo Padre traduz o sentimento de termos andado toda a vida fora de casa. Desta idade é preciso estar dentro de casa porque há muita coisa para pôr em ordem, para arrumar e deixar entrar o oxigénio. Aceito demasiadas coisas. Tenho um cardápio dos mandamentos da velhice, para não me deixar envelhecer. Mas vou dizendo que umas das características da velhice é também dizer a tudo que sim. Aceitar tudo. Fisicamente não tenho dificuldade nenhuma, já hoje fui dar o meu passeio de bicicleta, as pessoas ficam admiradas, como é que um velhote de 84 anos não tem limitações nenhumas. Estou cansado, mas apenas mentalmente. Dissipo-me muito. Tenho necessidade de estar cá dentro. De regressar a casa…
Sente-se que o perturba a missão da Igreja nos tempos modernos. Diz que o padre é um homem público que não se pertence. Pertence aos outros e, por isso, não compreende que os paroquianos não tenham o número do telemóvel do pastor. Chama-lhe pecado grave porque há doentes que precisam de cuidados religiosos fora de horas e há funerais que não escolhem dia para ocorrerem. As emergências da fé exigem disponibilidade e uma figura pública, como é o padre, não tem direito a telefone privado. No rol de desobediências à vocação confessa que lhe causa sofrimento a avareza. Que o padre enriqueça à custa do altar. D. Manuel Martins, agora, lamuria…
- Alguns, depois da ordenação, compram carro novo, constroem casas, entram na filosofia dos empréstimos. O povo percebe. O povo perdoa mais uma quebra na ordem da castidade, do celibato, de algum que tem um filho e o perfilha, que o reconhece como seu, o povo perdoa isso com mais facilidade do que a avareza. É das coisas que me dói mais, tanto a nível dos padres como da Igreja.
As mãos do bispo continuam a voar por cima da cabeça. Pigarreia para limpar a voz e deixar sair límpidas as ideias que estão encadeadas. Do papel da Igreja passa para a necessidade de Deus.
- Com as conquistas modernas está a verificar-se a chamada saudade de Deus. Deus era um recurso da nossa ignorância, mas os mestres sociólogos explicam que já estamos num tempo pós-moderno em que o homem começa a ter saudade de Deus. Procura das formas mais diversas, pode ser com o budismo, manifestações exotéricas, orientais, ou coisa parecida, mas sente a necessidade Dele. É semelhante àquilo que se define como a saudade do quintal. As pessoas estão a regressar aos campos. Muitas recuperam as casas abandonadas da família e têm saudade da panela de pernas onde se fazia a sopa e a fruta sem pesticidas.
Decidi estugar o passo para alcançar o plano de questões que tinha decidido fazer. Falei-lhe da crise para ver se concordava comigo na ideia de que o regresso à origens também é feita por causa de necessidades materiais. Falou da desumanização das cidades, que embebedam as pessoas durante um tempo, e delongou-se a explicar a teoria da saudade do quintal. Contou mais uma história sobre um rapaz que morreu no Luxemburgo e a comunidade organizou-se ainda antes da família para enviar o corpo para a terra de origem. E a história tem uma moral, como não podia deixar de ser: “até na morte queremos estar na Terra, porque até mortos, na Terra convivemos mais. É por isso que a gente diz que a terra da nossa Terra é sempre mais leve. O esquecimento é a grande morte. Não são lamechices, são estas coisas que fazem a nossa humanidade.”
O estalido do gravador funcionou como cronómetro. Já passara meia hora e dos objectivos da entrevista nem um estava cumprido. D. Manuel Martins, na combinação telefónica que fizéramos, dias antes, tinha dito, quando lhe referi o tempo que precisava, “nunca é só meia hora, pois não?”. Estava certo. Para recuperar tempo e temas atirei, um pouco de chofre, com a pergunta sobre os políticos, que nos governam, sem especificar quais. Depois de ter assumido alguma dificuldade em falar disso, D. Manuel Martins, de sorriso em riste, contou mais uma história. A do conselho que deu a uma “nossa” vizinha que fazia uma marmelada com um sabor especial que pretendia alugar uma loja ali perto. “Você devia convidar o Sócrates para provar. Ele chegava aqui e dizia que logo que nós tínhamos a melhor marmelada do mundo. Que estávamos na dianteira da Europa. Não era? Era o que nos dizia todos os dias.”
- Ele nunca desceu ao chão a comungar a sorte, a pouca sorte, a desgraçada sorte da população portuguesa. Eram sempre as grandes coisas que nos punham nos primeiros lugares. Pode ser uma questão genética. Era tão persistente, fazia tão parte dele… Era uma política mal pensada, mal realizada, com políticos que não eram competentes. Os nossos políticos, a começar pelos autarcas, estão rodeados por uma série de carraças que os sugam ou se aproveitam deles para engordar ou então não os deixam funcionar. Hoje chamar político a um tipo é o mesmo que chamar-lhe os piores nomes. Já reparou que uma pessoa para provar que é séria costuma dizer: Eu não sou político.
- Então gostou da mudança…
- Não sei. Estou a simpatizar com o advérbio. Os verbos estão quase todos por conjugar, por parte do governo. Fazer, tirar, arrumar, produzir, crescer… Os advérbios têm sido simpáticos, para mim. O modo de actuação. O Passos Coelho, que ainda não provou nada, tem um tipo de actuação interessante, com base na discrição. Oxalá seja para continuar. E que comece a pronunciar os verbos. Quanto aos ministros, gostei muito do das Finanças que fugiu a toda a teatralização do parlamento, ouviu muito e deu uma lição serena sem desrespeitar nenhum deputado. Quanto aos advérbios, estou a gostar.
Este pedaço da conversa foi o que mais se aproximou da entrevista que tinha imaginado. Ainda acrescentou que a crise por que passa o país faz-lhe lembrar uma imagem:
- Há um buraco tão grande, um tipo que cai nesse buraco e nós nem corda temos para o tirar. Esta é a imagem do país.
A partir daqui começo a ficar preocupado com as fotografias que tenho que tirar para ilustrar a entrevista. Retiro a máquina sub-repticiamente da mochila e começo a disparar à toa, com a câmara em cima dos joelhos. Ele apercebe-se, mas faz de conta. Já não presto grande atenção ao que me diz. Fala de um livro de Almeida Santos sobre a nova ordem mundial, resume-o e conclui: “Estamos num estado sem território. O grande Deus é o dinheiro. Estamos pendurados na economia.”
Lembro-me que lhe atirei mais algumas perguntas atabalhoadas no meio do ruído característico dos disparos fotográficos. A reacção do povo português, o que se passa na Grécia, o que se passou em Oslo. Recordo que a dada altura D. Manuel Martins me dizia, a propósito do desespero, que “em Setúbal, na cidade, só num dia, houve oito suicídios e foram pedidos pela honestidade”, para explicar que o povo está diferente e mais anestesiado. As manifestações já são um ritual que não molestam ninguém. Uma perda de tempo. Mas acredita no mundo novo que se está a gerar, segundo dizia João Paulo II, e que os sinais podem ser as manifestações dos jovens apartidários, que só querem dizer que não estão contentes, que isto assim não pode continuar. “Anda qualquer coisa a germinar dentro das pessoas. Temos que encontrar outra forma de protesto porque o mundo não é o mesmo.”
O clique do gravador foi a guilhotina da entrevista. D. Manuel Martins libertou-se do sofá e esticou as pernas no exíguo compartimento que lhe serve de escritório. Continuou a liderar a conversa. Aproveitei para lhe apontar a câmara fotográfica: “Pare lá com isso. Não são precisas mais fotografias.”
Trouxe-me à porta, ficou educadamente à espera que eu entrasse no carro, fizesse a manobra de inversão de marcha e iniciasse a viagem de regresso. Acenei-lhe, sorrindo, enquanto pensava: “Malandro do bispo, deu-me cabo da entrevista…”
V. M. Pinto (texto e fotos)
Data de introdução: 2011-08-05