1 - Tenho andado há meses em obras e em trabalhos agrícolas num bocado de terra onde passo os fins-de-semana. Este ano, como já referi numa crónica, melhorei a adega, abri caminhos novos, levantei uns muros. Agora, durante o inverno, será o tempo de plantar mais umas laranjeiras e carpinteirar, na vinha, umas ramadas e uns bardos. Não compro, portanto, laranjas espanholas nos supermercados ou na mercearia de rua onde me abasteço: como das minhas, durante todo o ano e ainda as distribuo pela família alargada. Vinho, bebo também do meu, como é timbre de qualquer lavrador que se preze. (Embora, neste segmento do consumo, varie mais do que nos citrinos, já que não me dispenso de ir comprando e conhecendo os novos vinhos do Douro.)
Cabe-me, assim, uma modesta contribuição para o equilíbrio da balança comercial, o primeiro sucesso da austeridade em que vivemos, ajudando o futuro da Pátria através da produção de bens e do consumo de produtos nacionais e do boicote às importações de alimentos do estrangeiro.
Fica-me cara a graça. Todos os anos – e desde há trinta anos – enterro nessas lides rústicas o dinheiro que me custa a ganhar, com a certeza de que, com religiosa regularidade, o mato e as silvas não deixarão de me invadir as culturas e de me arranhar os braços e as pernas quando vou podar as videiras. Cada garrafa do vinho que produzo fica-me mais cara do que se comprasse alvarinho.
Sou, como tantos outros, um exemplo vivo da lucidez e do juízo daquela definição da agricultura como a arte de empobrecer alegremente. Comprei, no entanto, esse pedaço de terra, essa pequena quinta, com o meu dinheiro. E é, como disse, o meu dinheiro que por ela se esvai como água em areia.
Estou no meu direito, por tal razão, de fazer o que me apetece - mesmo que o que me apetece seja um disparate ou uma insensatez. Sou o dono e sou eu que pago os prejuízos.
2 – O Governo - este ou outro -, no entanto, não comprou o País, nem o pagou do seu bolso. Mas porta-se com ele como eu com a quinta. Com a diferença de que quem paga a despesa não é o mesmo Governo que a desgoverna. A conta da despesa inútil somos nós que a pagamos. E também há pelo menos trinta anos que é assim, com os sucessivos Governos e os partidos que se revezam a sustentá-los a tratarem o País como se fosse a sua quinta - ou o seu quintal, medida mais adequada à nossa pequena escala. Empobrecendo Portugal com tanta determinação - como ainda há dias referiu o Primeiro-Ministro -, como eu, por minha vez, empobreço, embora certamente com mais alegria, nas margens doces do rio Tâmega.
Também no País estamos no inverno: já caíram as folhas, deixando os ramos nus e em modo de súplica; e as podas severas não têm poupado estas velhas cepas de Portugal. Transplantei o ano passado umas árvores de um local para outro – no inverno também, como é da regra. Podei-as com vigor, cortando os ramos precisos para que as árvores se não ressentissem da mudança e a seiva pudesse chegar a todos os pontos e suscitar a rebentação. Mas, quando chegou a primavera, em vez de as folhas e os botões irem aflorando às pontas dos ramos, deixando a natureza cumprir o seu ciclo, sucedeu que a seiva abandonou os veios da madeira – e as árvores secaram. Os cortes tinham sido excessivos e as árvores não aguentaram a cura.
Há quem diga que a metáfora se aplica ao País.
3 – Nem para todos os cortes têm sido excessivos. Não o foram, por exemplo, para o Dr. Eduardo Catroga, que, em boa hora, há meia dúzia de meses, recusou o ordenado pelintra de Ministro da Economia – que, ainda por cima, o obrigaria a suspender o recebimento da sua pensão de aposentação. Uns “trocados” - para usar uma palavra mais apresentável do que o registo faceto que o tornou celebrado -, em comparação com os 600 mil euros por ano que o esperam na EDP, espécie de empresa pública sem o ser, e que, ao contrário, por exemplo, do Presidente da República, lhe permite acumular esse salário com a pensão de reforma de 10.000 euros mensais.
Eduardo Catroga não foi o único reformado a ser nomeado pelos chineses para os salários exuberantes do chamado Conselho de Supervisão da EDP, tendo a acolitá-lo várias figuras eméritas da área dos partidos do Governo.
Trata-se de um verdadeiro conjunto de “galácticos”, como parece adequado designá-los, desde que Catroga se comparou a Cristiano Ronaldo no leilão das competências, justificando o seu novo salário com a sua cotação de mercado, não fosse Florentino Pérez vir buscá-lo para a Cibelles. Embora, em boa verdade, os nossos novos “galácticos” evoquem mais Raúl do que Cristiano Ronaldo.
4 – a) A EDP não é uma empresa pública, mas é uma empresa privada;
- b) O Governo não teve qualquer interferência, directa ou indirecta, activa ou passiva, nas nomeações;
c) - Os nomeados são os melhores e eram todos necessários para um órgão aparentemente inútil do ponto de vista da gestão;
d) - Se não fossem nomeados para tão altos cargos, emigravam, como o Governo recomenda aos desempregados, indo engrossar as fileiras de cérebros nacionais ao serviço do estrangeiro.
e) – Os salários são os adequados à qualidade das funções.
Tudo isto pode ser inteiramente verdade. A questão é que ninguém acredita. E quando aos portugueses comuns tantos sacrifícios são pedidos, em nome da incerteza do futuro, é inaceitável que uma empresa que é pública do ponto de vista do serviço que presta, do ponto de vista das infraestrututas que utiliza e do ponto de vista de quem lhe paga os preços que suportam os vencimentos dos príncipes, se afaste tanto do que é o padrão do País: um País pobre, sem recursos, à beira da falência, a viver de empréstimos e a pagar juros especulativos por eles, com 750.000 desempregados e com a juventude a emigrar para conseguir emprego, que confisca ilegalmente os subsídios de férias e Natal aos pensionistas e funcionários públicos, não tolera sem um sobressalto e uma insidiosa revolta esta exibição despudorada de dinheiro fácil - “dinheiro mal ganhado”, como diz o ditado.
A revolta é sinal de saúde cívica.
Até que nos tributem a alma.
Henrique Rodrigues, Presidente do Centro Social de Ermesinde
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