Solidariedade - Anunciou aqui há dias que há necessidade de reduzir pessoal nas instituições sociais ligadas à Igreja. Já tem uma ideia mais clara sobre o que é necessário fazer?
D. José Cordeiro - Quando cheguei à diocese de Bragança-Miranda, entre muitas outras coisas, verifiquei que era prioridade a organização da caridade, a começar pelas instituições particulares de solidariedade social católicas. Dei-me conta que 70% da acção social neste distrito é da responsabilidade directa da Igreja. E no nosso caso não é uma mera solidariedade, mas é uma solidariedade cristã centrada nessa fantasia da caridade, como lhe chamava João Paulo II. Estamos a continuar o levantamento, uma espécie de observatório social aqui no distrito. Porque mesmo aquelas instituições que não estão no âmbito directo da Igreja têm uma relação muito próxima e, algumas, uma identificação com os valores da Igreja. Tem sido um diálogo muito interessante. Verifiquei que essas instituições estavam voltadas para o seu raio de acção, viradas para si mesmas. Sentia que não havia solidariedade entre as várias instituições de solidariedade social. Vejo que o caminho vai ser longo porque a caridade dá que fazer. A reorganização passa sobretudo pela formação no âmbito da doutrina social da Igreja. Relativamente aos despedimentos, falei de uma percentagem mínima que equivale a 1% dos cerca de 3500 colaboradores nas nossas instituições. Depois falamos de cerca de 10% de emprego que está em previsão imediata, a ser concretizado com algumas instituições que estão em fase de conclusão das suas obras e de outras valências que vão ser iniciadas, como a de apoio a pessoas com deficiências e também a de apoio a pessoas vítimas de violência doméstica, por exemplo. Há um grande trabalho a fazer, isso sim.
Deu conta que as IPSS estão fragilizadas e é preciso um cuidado especial com as pessoas que nelas trabalham? Nos tempos de correm é preciso muita formação?
Sim. Das instituições que conheço e visitei, só tenho a dizer bem. Fazem um trabalho notável no âmbito do seu raio da acção. Aquilo que nós propomos como formação é para tornar ainda mais credível a diaconia da caridade, o serviço da caridade. Não é que as pessoas não o tenham, eu não me atrevo a dizer isso, agora que o testemunhem e se torne mais visível. A acção destas instituições é hoje mais difícil ao nível económico e financeiro mas, por outro lado, até é mais fácil porque há uma maior relação e flexibilidade do próprio Estado no acompanhamento destas instituições. Pelo menos aqui no distrito temos notado isso. Eu creio que é notável o trabalho das instituições e, sobretudo, dos dirigentes, a maior parte deles voluntários. Temos cerca de 500 pessoas nos órgãos sociais a título voluntário. É significativo, mas não basta.
Pode haver colisão entre o voluntarismo e a boa gestão…
Exactamente. Não basta a boa vontade é preciso haver a competência técnica e profissional , num equilíbrio, numa harmonia muito forte entre estas duas componentes. A Igreja faz uma opção preferencial pelos pobres, faz por todos, mas de uma maneira especial pelos que mais precisam e não são apenas aqueles pobres das necessidades básicas e alimentares, mas são os idosos, são os que vivem sós, são as crianças, são os doentes. Na diocese temos também um trabalho notável de ministros extraordinários da comunhão que acompanham em suas casas os doentes. Tudo isto faz o serviço da caridade, mas tudo na Igreja, desde a evangelização, desde a palavra à liturgia, desde a liturgia à caridade tem que ser a expressão do rosto visível de Cristo hoje e do seu Evangelho. E por isso é que não basta a boa vontade. Depois há alguns problemas que também se enredam. Problemas de ordem partidária e política que inquinam a vocação e a missão de muitas destas instituições. Temos casos destes e espero que com o tempo se resolvam. Nós não nos orientamos por princípios partidários ou políticos, mas pelos princípios do evangelho, da caridade. Colaboramos com o Estado, ou melhor, o Estado colabora connosco e libertamos muito peso do Estado mas não somos funcionários do Estado.
Considera que há uma exacerbada ocupação de alguns padres com a gestão das IPSS e menos com a evangelização?
Desde o primeiro encontro que tive com os padres desta diocese manifestei essa preocupação. Usando uma expressão de João Paulo II, gostaria muito que os padres fossem padres e só padres. Isto é, que cada um na Igreja faça tudo e só aquilo que lhe compete. Para isso é preciso suscitar o dinamismo dos leigos e do diaconado permanente, para que sejam os protagonistas da acção sócio-caritativa da Igreja sempre com a vigilância, isto é, com o acompanhamento dos padres. Por razões estatutárias os padres são sempre os presidentes destas instituições, nomeadamente os centros sociais paroquiais, mas defendo que devem ser progressivamente libertados desse peso da burocracia. Vai ser um trabalho longo, árduo, muito difícil, estou a sentir isso.
Acha que nos tempos que correm a Igreja deve continuar a ser o rosto da solidariedade?
Vejo total conveniência porque a Igreja tem mesmo que ser o rosto da caridade porque é uma exigência da própria fé. Porque nós vemos no outro e nomeadamente no pobre, no doente, no frágil o rosto de Cristo, o sacramento de Cristo e é por isso que a Igreja chamada a ser perita de humanidade tem de estar ao lado dos mais frágeis, dos que mais precisam. O restaurar do diaconado permanente vem nesta linha do exercício da caridade. Que tem que ser institucionalizada porque precisa das regras e como vivemos em democracia, vivemos com direitos e deveres de cidadania, mas isso é apenas um meio porque ela tem que ser organizada só para melhor servir, para melhor atendermos as pessoas. Não é para nos refugiarmos na organização. Às vezes, perdemo-nos na burocracia, perde-se eficácia e não chegamos àqueles para os quais somos chamados, ou chegamos em segunda ou em terceira fase.
Até que ponto a Igreja também não tem sido tão rápida a reagir perante os novos problemas sociais?
Eu costumo dizer que, em relação a esses como a tantos outros problemas, a dificuldade da parte da Igreja é porque muitas vezes é entendida como quase uma multinacional que tem a cabeça que está em Roma e depois que tem as suas filiais que são as dioceses. A Igreja não é isso. A Igreja não é uma associação, não é um movimento. A Igreja é uma comunidade, é um organismo vivo que tem as dificuldades inerentes a uma comunidade humana, iluminada pela fé, é uma comunidade humano-divina e, portanto, vive na história, vive encarnada nos tempos de hoje. A Igreja mais do que reagir deve agir.
Está a dizer que a Igreja é um pouco antiquada desse ponto de vista? A Igreja Católica é pouco versátil? Tem medo da novidade?
Eu creio que não. Algumas pessoas que são o rosto dessa Igreja podem ser! Mas a Igreja como tal não porque desde a primeira hora, desde o seu nascimento foi convidada a anunciar, usando todos os meios a propósito e a despropósito como diz S. Paulo, deve comunicar a vida boa do Evangelho. Eu não vejo porque é que tenha de ter medo. Agora, não deve usar isso para o seu próprio benefício como se calhar tantos outros organismos religiosos o fazem. Deve usar os meios de comunicação social, deve usar as novas tecnologias, que não são novas para as gerações de hoje, mas para muitos na igreja ainda são muito novas essas tecnologias que podem servir para comunicar a vida boa do Evangelho. Não é para fazer publicidade, não é para proselitismo, não é para propaganda, mas é para comunicar aquilo que considera ser a melhor proposta para a vida do homem, a melhor proposta de felicidade que é o Evangelho de Jesus Cristo. Em razão da sua história, em razão da sua experiência, em razão da sua credibilidade na sociedade portuguesa não pode ter medo, pelo contrário, deve ser corajosa.
Sei que no seu caso isso é uma militância. Utiliza a internet, tem facebook…
Sim, sim, eu procuro fazê-lo naturalmente. Não tenho o tempo que gostaria para isso. Há também uma equipa de leigos e um padre que colabora comigo. Estamos na fase final da criação da página da diocese onde isto se torna mais fácil. Agora privilegio sempre a relação pessoal e aquilo que acontece nessas novas ferramentas, nomeadamente no facebook, às vezes, é um primeiro encontro que depois tem a consequência de um encontro pessoal ou até de pessoas que estão longe de Bragança, e até dos emigrantes. Há pessoas que até estão distantes da Igreja, distantes da fé e que vêem este meio como uma possibilidade de aproximação e de proximidade com alguém que lhes parece que possa dar algo mais de esperança às suas vidas. Tenho tido experiências belíssimas a esse nível que estava longe de imaginar que pudessem ser conseguidas também por essas novas tecnologias.
Pode fazer-se essa adaptação à liturgia. É possível, é desejável o uso de novas tecnologias?
Aí, vejo com maior dificuldade porque o conceito de longo alcance que o Concílio Vaticano nos trouxe da liturgia é o da participação activa, consciente, frutuosa que exige sempre a presença e uma presença qualificada, que toque o mistério que é celebrado.
Li uma declaração sua em que dizia querer torná-la mais fácil mais simples..
Isso sim, é um desafio que eu tenho para mim mesmo e para a diocese. Já consertámos também isso no presbitério: que a liturgia seja mais simples, mais bela, mais séria até. Como é um palco onde todos têm um certo protagonismo, há que tomar consciência, antes de mais, que quem preside não é o bispo, não é o padre. Quem preside é Cristo. E nós estamos ali em nome de Cristo e em nome da Igreja, que é um património comum que não nos é permitido a nós alterar só porque nos dá gosto ou nos apetece.
Do ponto de vista pastoral e segundo as estatísticas, tem havido uma diminuição da oferta e da procura... Isso leva a Igreja a repensar-se para estes tempos?
Claro que sim. A Igreja tem que estar em estado permanente de mudança, de missão. Aliás, a Igreja existe para evangelizar. Com alguma experiência fora daqui, 12 anos que estive em Roma, com uma mundividência e uma experiência também da catolicidade da Igreja, pergunto-me muitas vezes: Porque é que o número dos sacerdotes no mundo aumenta e aqui diminui? Porque é que a Igreja aumenta mesmo na estatística ao nível mundial e aqui diminui? Eu acho que a questão é tocar nessa tal ferida. Se calhar a Igreja não está a ser testemunha autêntica. Estou a falar da diocese de Bragança-Miranda. Não me atrevo sequer a comentar além desta porque é esta que me foi confiada e é com esta que estabeleci um pacto e uma aliança. Porque, se calhar, existe uma crise de fé. E é preciso identificar as causas para alinharmos nas verdadeiras prioridades pastorais. É isso que estamos a tentar fazer aqui, na diocese de Bragança-Miranda.
Deste ponto de vista a sua chegada trouxe muita expectativa. Ficou surpreendido?
Fiquei surpreendido e ao mesmo tempo arrepiado. Porque isso traz uma grande responsabilidade. O ministério episcopal, por si mesmo, e sobretudo hoje, não é nenhuma honra, é um peso, é uma cruz. Eu costumo dizer que é uma cruz florida. É aquela mesmo que eu trago ao peito… uma cruz de amendoeira florida para que eu próprio não possa desanimar e que me seja sempre aberta com essa iluminação da Páscoa. Vi que existia essa esperança, mas imediatamente eu procurei dizer que essa esperança não pode ser depositada em mim, a esperança tem que ser depositada em Cristo. Não quero desiludir ninguém, mas também não quero que se iludam comigo. Isso foi prevenido desde a primeira hora. Eu não sou salvador da pátria, não sou nenhum dono da igreja e não sou o patrão da tal instituição.
O facto de ser o mais jovem bispo português, de admitir gostar das coisas que os jovens gostam, esbateu a diferença… Se calhar, a esperança reside nessa promessa de proximidade. Isso vai manter-se?
Espero que sim. Espero que se mantenha e aumente. Estou a fazer tudo isso não por nenhum protagonismo ou estratégia, mas por missão. A reorganização pastoral é exactamente para isso, para melhor servir o Evangelho e as pessoas aqui, que peregrinam nesta Igreja no nordeste transmontano. Espero fazer isso de uma maneira mais acentuada e mais próxima a partir de Outubro. Este primeiro ano decidi que fosse de reconhecimento e de reorganização.
Faz sentido pensar que existe uma nova geração de bispos portugueses?
Creio que isso é natural. Os antecessores sentiram o mesmo. A renovação é progressiva. Aquilo que este Papa chama a hermenêutica da continuidade que não é apenas doutrinal, mas também é de atitude, de comportamento dentro e fora da igreja. Cada pessoa tem o seu próprio estilo e nós também sentimos isso na passagem de João Paulo II para Bento XVI. Não se pode imitar. Cada um é com a sua riqueza e com a sua fragilidade. Mas que deve sentir-se sempre como um servidor e não como um dono ou proprietário. Eu tenho sempre muito claro para comigo, todos os dias e todas as manhãs quando me levanto e quando rezo, de me sentir sempre um servidor do Evangelho, um servidor da palavra, um servidor da esperança. As tentações existem para toda a gente. Naquelas que são consideradas figuras públicas, como acontece connosco, a tentação pode ser maior: a da fama, a da riqueza e a do poder. Ao contrário, nós temos que ser pobres, humildes, servidores, e ser este rosto de Cristo que veio para servir e não para ser servido. Algumas pessoas dizem: o senhor é muito mediático, aparece demasiadas vezes. Eu só apareço as vezes que me pedem para aparecer. Não sou eu que tomo as iniciativas de aparecer e se isso ajudar a outros a aproximarem-se ao Evangelho de Jesus, óptimo, se calhar também podem incomodar outras pessoas, não sei. Mas faz parte do mundo em que vivemos. Neste primeiro ano eu tenho aceitado muitos convites no próximo ano terei que reduzir.
Para terminar…acha que Portugal consegue sobreviver à crise? Portugal conseguirá passar com êxito esta fase?
Eu acredito que sim, quero mesmo acreditar. Tem mesmo que conseguir. Porque nós, olhando à história recente e à história passada, vemos que Portugal soube sempre ultrapassar as grandes dificuldades, os grandes obstáculos na sua história. Apareceram sempre pessoas competentes, capazes, para liderar esse crescimento e desenvolvimento. Acredito firmemente que o crescimento e o desenvolvimento é o novo nome da paz e da justiça. Não é possível viver em paz e justiça e também no exercício desta caridade de que falávamos no início sem crescimento, sem desenvolvimento. Que não seja a qualquer custo, sem dúvida, mas que privilegie e que tenha como centro as pessoas.
V. M. Pinto - Texto e fotos
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