OPINIÃO

A Refundação

1 - Tenho uma casa velha, na qual vou fazendo, de vez em quando, algumas pequenas obras, quer para a sua conservação, quer para a modernizar e adaptar a novas necessidades, quer para a tornar mais confortável e amena.
Só lhe tenho feito reparações moderadas, sem alterações de fundo.
Normalmente, antes de iniciar umas obras, é necessário remover previamente alguns materiais, alguns obstáculos, levar a cabo certas operações preparatórias, para que seja possível começar os trabalhos.
Como já uma vez referi nestas crónicas, citando o meu primo Luís Miguel Queirós, “… precedem sempre a obra/ pequenas demolições/ a que, na sombra,/ só o coração assiste.”
Ignorante das artes e dos segredos dos pedreiros - quer dos da construção civil, quer dos outros - procuro, no entanto, acompanhar os seus trabalhos, para que o resultado corresponda ao que pretendo: melhorar as condições de habitabilidade e conforto da casa onde, aos fins-de-semana, descanso da vida agitada e intensa que me ocupa os dias e cuido da vinha e das laranjeiras.
Mas, em todas as obras que vou fazendo, nunca mexi nos alicerces, nos caboucos, nas bases, nas fundações.
É sobre elas que assentam as paredes, que se suportam as placas e os pavimentos, que se equilibram os vãos e os alçados.
Não se vêem, tapadas e escondidas que ficam debaixo do solo – mas qualquer artista sabe que são essenciais e que se não pode mexer nas fundações sem todas as precauções e cuidados.
Se não, a casa vem abaixo.
Quero manter a minha casa como está, na sua identidade e estrutura: parafraseando José Régio, “… uma casa velha,/… Cheia dos maus e bons cheiros/ Das casas que têm história,/Cheia da ténue, mas viva, obsidiante memória /De antigas gentes e traças,/Cheia de sol nas vidraças/ E de escuro nos recantos,/ Cheia de medo e sossego,/De silêncios e de espantos/ - Quis-lhe bem como se fora/Tão feita ao gosto de outrora/como ao do meu aconchego ”.
É da sabedoria antiga, com particular pertinência nas artes construtivas dos templos religiosos, das imponentes catedrais góticas às modestas ermidas românicas, a importância da chamada pedra angular: a pedra do fecho, que, uma vez removida, provoca o desequilíbrio da construção – “a pedra que os construtores rejeitaram tornar-se-á a pedra angular”.
No plano simbólico e no próprio coração da nossa cultura cristã, tal ideia da base, do alicerce, das fundações, tem também tradução na fala de Cristo a Pedro, ao instituir a Igreja: “Tu es Petrus et super hanc petram aedificabo ecclesiam meam.”
Não se pode tirar a pedra angular, nem se podem remover ou mudar os alicerces, as fundações, sem que caia a casa que nelas se sustém.
É certo que uma certa cultura adventícia, de pato-bravo, nos confronta muitas vezes com propostas radicais: é da experiência de todos que, quando contratamos um empreiteiro para nos levar a cabo umas obritas, de restauro ou de reforma, ele começa o trabalho cheio de entusiasmo e prosápia; mas cedo vai esmorecendo e se vai desinteressando da obra, até nos vir com a proposta fatal: ó Senhor Doutor, é melhor deitar abaixo e fazer novo.
Resta-nos então mandar embora o empreiteiro e chamar outro.

2 - A democracia sob cujo manto felizmente vivemos é como a casa antiga: de quatro em quatro anos, mudamos de empreiteiro, porque o anterior nos foi adiando, abandonando a obra, aldrabando - e contratamos um novo, que sempre esperamos não ter os defeitos e os vícios do antigo, mas que rapidamente nos esclarece não ser diferente dele, com entradas de leão e saídas de sendeiro.
Cada um, sob as nossas ordens, vai acrescentando um aposento aqui, eliminando um outro ali, reformando um tecto além, abrindo uma janela ou fechando uma porta acolá.
Mas a democracia que nos enquadra a vida é também como essa casa noutros aspectos: velha mas confortável, como um casaco de tweed largo e gasto pelo tempo; capaz de se ir reformando para nos melhorar a vida, mas previsível; sempre em “modo mudando”, mas sempre idêntica e habitual nos traços essenciais.
Cada novo Governo, cada nova maioria, vai reformando umas coisas, vai retocando outras, vai melhorando, vai adaptando, vai aumentando.
Ou vai diminuindo, como é agora o caso.
Sem nunca, todavia, se atrever a tocar na base.
Mas há sempre um momento em que lhes dá a vertigem inaugural, a atracção do abismo, a pulsão torrencial da criação do mundo.
E, como os empreiteiros de sempre, lá vem a proposta fatal: vamos construir um país novo – e deitar fora o velho.
Como já aqui referi na crónica anterior, o mandato que confiamos, de quatro em quatro anos, para que nos governem, não confere mais do que os limitados poderes para pequenas mudanças, pequenas demolições, pequenos acrescentos.
Para que a vida se mantenha confortável, segura, previsível, habitual – e com as alterações mínimas, para nosso sossego.
Como proclamavam os surrealistas: “do que se trata não é de transformar o mundo, mas de mudar a vida.”
Parece que querem agora refundar o País, quer dizer, mudar-lhe os alicerces, as fundações.
Ora os alicerces não se mudam com eleições.
Só se mudam com revoluções.

3 – As revoluções são, na verdade, o modo consagrado e típico de virar o mundo do avesso.
As revoluções conferem, também, legitimidade, tal como as eleições.
E conferem até uma legitimidade mais ampla, do ponto de vista do conteúdo da acção governativa, porque esta não tem o freio de uma Constituição a que obedeça, nem de leis que tenha de cumprir.
Pelo contrário, a revolução faz-se também para gerar uma nova Constituição, diversa da anterior.
A revolução, essa sim, tem a força inaugural – e a miragem de um mundo novo.
Nem todas as revoluções são más.
No que nos diz respeito, e só no século passado, Portugal viveu a Revolução do 5 de Outubro, que aboliu a Monarquia e instaurou a República; o 28 de Maio, que instituiu a Ditadura Militar e o Estado Novo; e o 25 de Abril, que restaurou a Democracia.
No que pessoalmente me diz respeito, ainda bem que houve no nosso País o 5 de Outubro e o 25 de Abril; e mal nos calhou em sorte o 28 de Maio e o fascismo.
Mas mudanças de alicerces, de fundações, por via revolucionária, são aceitáveis e legítimas.
(Embora o mundo novo que proclamam raramente seja melhor que o velho.)
Por via do rotativismo governativo, através de eleições, é que não vejo legitimidade que lhes confira tal poder.
Até porque a estrutura constitucional, o edifício, o regime político em que vivemos, se mantém o mesmo – e de pé.
Foi a Constituição que temos que o Presidente da República jurou cumprir e manter, sendo também sob o seu império que o Governo – este, como os outros – foi empossado.
E, como já disse acima, se se quiser mudar as fundações, refundá-las, retirando a pedra angular, a casa vem abaixo.
Connosco lá dentro.

Henrique Rodrigues – Presidente do Centro Social de Ermesinde

 

Data de introdução: 2012-11-22



















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