“Uma das histórias que mais me chocou foi ouvir uma enfermeira dizer a duas filhas cuja mãe ia, claramente, morrer naquela noite, que a iam passar para um quarto onde elas poderiam estar com ela. As filhas desculparam-se que não podiam, mas duro de ouvir foi as filhas a conversarem, mais tarde, na sala de espera: «Já viste estas gajas, a gente paga impostos que lhes pagarem os ordenados e elas querem que a gente fique aqui a fazer o trabalho delas!». Esta história chocou-me… Como é que estas filhas, por sua vez mães, podiam confundir que os cuidados médicos de uma enfermeira estão no mesmo patamar da presença de uma filha na noite da morte da mãe”, conta o padre José Nuno Silva, capelão do Hospital de S. João, no Porto, há 14 anos, e que cuja tese de Doutoramento, intitulada «A morte e o morrer entre o deslugar e o lugar: Precedência da antropologia para uma ética da hospitalidade e cuidados paliativos», foi recentemente publicada pelas Edições Afrontamento.
Estudou a morte hospitalar e todas as implicações, a jusante e a montante, que o que considera “morrer mal” têm na vida dos doentes, dos familiares e dos profissionais de saúde. Mais do que a análise de uma realidade, o trabalho académico sistematiza um processo de mudança, que ao início parecia uma miragem, mas que ficou provado ser possível.
O Padre Nuno, como é conhecido na instituição hospitalar, relembra mais dois episódios, que acabam por demonstrar isso mesmo.
“Este trabalho nasceu, numa noite de 7 para 8 de Dezembro, aqui há uns anos, numa sala de pensos do hospital, onde um homem foi obrigado a morrer só, na mais hedionda solidão… A doença era terrível, mas a presença da mulher era um factor de alívio e, no final da visita, a mulher foi mandada embora, apesar de não querer… Foi aí que nasceu a indignação que me fez perceber que isto é uma loucura. O que se estava a passar para mulheres, as enfermeiras, porem fora uma mulher à força quando o marido está a morrer numa sala de pensos onde não incomoda ninguém?”, questiona o capelão, recordando como esta situação acabou por desencadear o trabalho académico e a mudança das práticas hospitalares: “Começámos, então, o processo que está na origem deste trabalho… Passado uns tempos, fui chamado a um doente que estava a morrer na mesma sala de pensos, mas onde a família estava com ele e já pela terceira noite seguida. Mudar é possível e a situação das enfermeiras que se manifestou ao colocarem na rua a mulher do doente era a expressão de um grande sofrimento que tinha que ser escutado. E quando foi escutado, interpretado e percebido devidamente as pessoas foram interpeladas com compreensão e as coisas mudaram”.
SOLIDARIEDADE – Sendo este um trabalho de estudo de uma realidade, qual a principal conclusão a que se chega?
Padre José Nuno Silva – É a de que temos que reumanizar a morte se quisermos reumanizar a vida. A vida como a sociedade a determina hoje e consente facilmente cai em ritos e em rotinas desumanizadas, em que não temos tempo para ser pessoas uns com os outros. E a consequência imediata disto é atirar para a margem aqueles que estão a morrer. A exclusão social dos que estão a morrer, sintoma agudíssimo da patologia social, é o contexto sobre o qual é possível a mudança. Este livro é uma narrativa de um processo partilhado nesta casa [Hospital de S. João] por muita gente. A perspectiva inicial era de ser impossível mudar um estado de coisas inadmissível, mas depois percebi que é possível mudar. E é isso que este livro conta, narra um processo de mudança. Há 12 anos, no Hospital de S. João, falar dos doentes que morriam era pecado! E, no entanto, todos os dias morriam aqui cinco ou seis pessoas. Com todo o sofrimento que isso significava, em primeiro, para os doentes que aqui morriam, e que morriam mal; todo o sofrimento associado àqueles que fazem parte dos doentes, as suas famílias; e, não menos importante, com todo o sofrimento por parte dos profissionais de saúde. E este tempo que estamos a viver tem como uma das características culturais mais marcantes a exclusão social e cultural da morte e do morrer. Num hospital isso não é possível, porque o hospital é para onde se evacua a morte que não se quer ter nos lugares que frequentamos habitualmente. A prova disto é que no espaço de 30 anos passámos de menos de 20% para mais de 60% de óbitos por ano no hospital.
Mas não é natural que se morra no hospital, onde se chega doente e mais vulnerável à fatalidade da morte?
A morte hospitalar é precisamente a morte não natural… Nós perdemos a naturalidade do morrer. E por isso a nossa incompetência em lidar com a morte e com a naturalidade da morte. A nossa incapacidade de perceber a morte como um momento necessário da vida leva-nos a exportar a morte para um lugar onde ela se reveste de profunda artificialidade. É certo que até aí não se morria no hospital porque o hospital não era acessível a todos. Agora, o que verifiquei é que este dado é em si ambíguo. Se é verdade que morrer no hospital é sinal de uma realidade positiva, também é verdade que a morte no hospital é sinal de que a incapacidade de lidar com as pessoas que estão a morrer leva a exclui-las para o hospital. E este vê-se ferido na sua raiz, por esta ambiguidade de fundo, pois ao mesmo tempo é a expressão da solicitude da sociedade para com os seus membros doentes, mas também o espaço para o qual a sociedade desloca aqueles para quem lhe custa olhar. A cultura actual torna as pessoas de tal maneira frágeis, que se lhes torna impossível conviver com os que estão a morrer. Por outro lado, construiu-se todo um conceito de felicidade baseado no bem-estar que não suporta a presença dos que estão a morrer. A morte, de alguma maneira, desmascara a ilusão de um conceito de felicidade assente no bem-estar. Há um conjunto de processos de evacuação dos que estão a morrer, seja por doença, seja por velhice, com a criação de instituições, lares de idosos, ou a sua reconversão, no caso dos hospitais, para onde se exportam aqueles cuja presença perturba esta fragilidade e esta ilusão.
Neste contexto surge ainda a impossibilidade das famílias conseguirem tratar dos seus, seja na velhice, seja na doença?
E aí é que está o problema, porque a desumanidade da sociedade é uma questão estrutural. Criámos uma sociedade em que não cuidamos e em que não podemos cuidar uns dos outros. E estamos manietados pela estrutura social que criámos…
E vê saída para esta situação?
No meu entender, e essa é a minha tese, há uma saída… A cultura social está doente e a sociedade enferma da doença que provoca. Sem integrar de novo a morte no horizonte da vida nunca nos encontraremos com a nossa humanidade, que é mortal, e nós vivemos alicerçados na ilusão da imortalidade.
Daí sustentar que “não se vive bem numa sociedade em que se morre mal”?
Nós iludimo-nos, mas, no fundo, anda a morder-nos a consciência que vamos morrer mal… Porque ninguém gosta do modo como se morre hoje…
Ninguém quer ou gosta de morrer…
Sim, em primeiro lugar, mas ninguém gosta do modo como se morre… Portanto, tentamos calar isso e remover isso da nossa consciência, mas essa realidade, essa perspectiva trágica anda a morder-nos.
E a saída passa por onde?
A morte está a acontecer no hospital, é aí que tem que se fazer o investimento. A morte passou das mãos das famílias para as dos profissionais de saúde, então, vamos investir nos profissionais de saúde. Há que fazer uma revolução cultural… Reintegrar a morte na sociedade é uma revolução cultural. E os primeiros agentes dessa revolução são os profissionais de saúde. Estamos a viver o primeiro período da História que não tem a arte no morrer…
É neste contexto que entram os cuidados paliativos?
A leitura que faço dos Cuidados Paliativos é de que estes não são apenas uma maneira que responda à pergunta: Como cuidar dos doentes que estão a morrer? Os Cuidados Paliativos são a fonte de uma nova sabedoria de bem com a morte, de um novo modo de olhar a morte… A morte nunca deixará de ser dramática, porque a morte será sempre a emergência do carácter dramático da nossa condição… Muito poucos são os santos que morrem pacificamente. Aliás, o período final da vida diz-se que é a agonia, que em grego significa combate. Tudo em nós pede para viver e perante a morte é de confronto que se trata. Agora, os Cuidados Paliativos não respondem apenas a esta questão de como acompanhar e o que fazer com os que estão a morrer, mas também a um desígnio civilizacional muito maior e que é serem o lugar onde se pode começar a fazer a revolução. É serem a linha da frente na transformação dos profissionais de saúde, pois é neles que reside a possibilidade de cortar o ciclo vicioso da desumanização da morte que gera a desumanização da vida… Vamos cortar isto onde está e isto está nos hospitais e nas mãos dos profissionais de saúde.
Como interpreta o contexto do País no momento?
É um momento extremamente difícil e, ao mesmo tempo, que nos está a empurrar para aquilo que nos faltou nas duas últimas décadas, o realismo!
Tem sentido no hospital os reflexos deste ambiente que se vive?
O hospital é o espelho da sociedade, onde os aspectos críticos de cada momento da sociedade se vivem mais agudamente. O Hospital é o bueiro onde tudo vem parar. Toda a patologia, tudo o que é somatização da angústia que se vive, vem cá ter. Ao contrário do que dizem algumas pessoas, nós estamos a viver uma crise económica porque tivemos uma crise social. A sociedade vive um período crítico, caracterizado por um alto individualismo, em que cada um fez o regabofe que pôde… Há uma crise espiritual anterior a tudo. As pessoas não percebem que no princípio de tudo está uma crise espiritual, de conceito do próprio Homem e da sociedade. Essa crise espiritual determinou uma crise moral e esta provocou um determinado modelo de desenvolvimento económico que teve a repercussão social que agora estamos a sentir.
E, ao longo destes 14 anos, sente alguma alteração no padrão de comportamento no Natal?
Há um fenómeno que cresceu muito e que é o das pessoas que vivem sós. Há uns anos, quando andava a ver os doentes na véspera de Natal, em camas uma ao lado da outra, estava uma senhora toda contente porque ia passar o Natal no hospital e uma outra a chorar porque não ia passar o Natal a casa com a família. Esta realidade é tremenda e que necessita de atenção. A solidão é outra dimensão da configuração da sociedade portuguesa de hoje. As famílias de uma pessoa só é uma questão que exige atenção redobrada. Em termos de Natal, o que tenho notado é o aumento das pessoas que preferem passar o Natal no hospital, já não são apenas as pessoas que choram porque queriam estar em casa. Há pessoas que ficam contentes, porque assim passam o Natal com alguém e em casa estariam sozinhas. Por outro lado, também assisti a uma outra dimensão do Natal, que passa pela superficialização do Natal, por via da sua laicização. O que ouço muitas vezes é: “Sabe senhor padre, no Natal já não quero prendas, nem quero nada, só queria estar com os meus”… E não falando apenas do Natal como a festa das famílias, mas também como o do nascimento de Cristo, pois há pessoas que, por estarem a viver o Natal no hospital, percebem que o importante é mesmo celebrar que Deus se fez homem.
E como vê esta intenção do Governo de penalizar as famílias que abandonam os familiares nos lares e nos hospitais?
Não sei bem como isso se vai passar, mas repugna-me que se fale de abandono, porque conheço muitos casos em que quem, entre aspas, abandona, não abandona mas confia, porque sabe que no hospital os seus idosos vão ser alimentados e em casa têm que optar entre dar de comer aos pais ou aos filhos. E mais com a situação económica que estamos a viver. E há outra coisa que é preciso desmascarar, temos que ter cuidado com as palavras… Abandonar é uma palavra fácil de usar porque define um culpado, portanto, desresponsabiliza. A questão da velhice e da inversão da pirâmide etária é um problema social que não pode, de maneira nenhuma, ser desligado deste horizonte, isto é, o que acontece com os idosos é um problema da sociedade inteira, não é só dos filhos daqueles idosos…
Pedro Vasco Oliveira (texto e fotos)
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