ASTA, ALMEIDA

Ter uma deficiência é diferente de ser deficiente

“Terra profunda/Mãe!/Com as mãos te trabalhamos/Com o coração te amamos/Com a boca te saboreamos/Abrimos-te em sulcos/Semeamos-te a vida/Damos-te de beber/Tu dás-nos as cores e afagas as dores/Dás-nos o alimento que ajuda a crescer/E ensina a viver/Ó Terra, sê nosso sustento”. Com este ode à Terra, Maria José Fonseca, mentora e grande obreira da ASTA – Associação Sócio-Terapêutica de Almeida, louva e agradece à Mãe Natureza, ao mesmo tempo que plasma grande parte da essência da instituição que criou no ido ano de 1998, mas cuja a actividade apenas se iniciaria dois anos depois.
A ASTA, que há dois anos foi distinguida com o Prémio Manuel António da Mota, é uma instituição muito singular que trabalha na área da deficiência. Sedeada no remoto concelho de Almeida, mais concretamente na aldeia de Cabreira, onde actualmente a maioria da população são os “companheiros”, nome dado aos utentes, a instituição faz da integração e utilização do meio rural as suas ferramentas de trabalho com uma população maioritariamente da região, mas não só.
“Consideramos que há três pilares fundamentais para que os cidadãos se sintam cidadãos na sociedade: a família, o trabalho e o grupo social. Isto quer dizer que qualquer cidadão precisa de ter, de alguma forma, subjacente à sua vida estes três pilares, para que possa existir e se possa sentir cidadão de pleno direito”, começa por explicar a presidente da ASTA, especificando: “Quando falamos em família queremos dizer que qualquer cidadão precisa de uma família, mesmo que não seja a biológica. Quero com isto dizer que precisa de uma estrutura de afecto, de co-responsabilização conjunta, de um projecto de vida, principalmente dos afectos que as famílias criam. Então, mesmo que não seja a família biológica, e sabemos que as rectaguardas familiares ou são deficientes ou não existem, é fundamental que lhes seja dado esse espírito de família que o vai ajudar a nível dos afectos e até de responsabilidade. Os núcleos familiares são pequenos grupos em que cada um tem as suas responsabilidades. Depois, o trabalho é algo que consideramos, não um peso social, mas algo de fundamental para participarmos e nos responsabilizarmos socialmente. E aqui consideramos que, seja qual for a idiossincrasia ou deficiência, o trabalho é algo de fundamental para que todos os cidadãos possam sentir e dizer que também estão a trabalhar para a sociedade. Qualquer pessoa, numa cadeira de rodas ou com paralisia cerebral, pode participar activamente na comunidade. Qualquer ser pode ter um trabalho como contributo para a comunidade. As nossas intenções são sempre descobrir as potencialidades de cada um e aproveitá-las para que sejam postas ao serviço da comunidade, do grupo. Os nossos trabalhos de carpintaria, tecelagem, olaria e agricultura não são meros CAO, que tradicionalmente são vistos como espaços onde eles passam o tempo… Aqui, recusamos essa imagem de entretenimento através do CAO, este é um espaço de aprendizagem, de satisfação pessoal, de criação estética e sempre de produção de coisas utilitárias. O grupo social é algo que os companheiros, como aqui lhes chamamos, têm como concreto… Esta é uma comunidade terapêutica dentro de uma aldeia à qual pertencemos, na qual temos responsabilidades cívicas e na qual participamos, dizem os nossos companheiros... Essa visão tradicional de instituição, recusámo-la desde o início”.

MOVIMENTO CAMPHILL

Neste espírito, a integração em meio rural é algo muito vincado na instituição, o que leva Maria José Fonseca a sublinhá-lo como “algo muito importante”.
“Karl Konig, fundador do Movimento Camphill, era um médico pediatra que fundou, depois da II Guerra Mundial, na Escócia, a primeira aldeia Camphill, precisamente baseado na filosofia em que quem quisesse unir-se em comunidade e viver com estes jovens, num espaço em que houvesse terra, porque a natureza, por si só, constitui um elemento terapêutico fundamental, podia fazê-lo ali. E a sócio-terapia se puder ser feita num espaço integrado na natureza é muito importante. Na sócio-terapia, em vez de um medicamento ou uma injecção, quando alguém tem uma crise, leva-se a pessoa sair de braço dado para um passeio no pinhal, para sentir o vento e a chuva, ou através de uma dança, do canto, da arte, que são uma constante na sócio-terapia e na pedagogia curativa”.
A este propósito, refira-se que um dos projectos muito acarinhado na ASTA é o grupo musical «Pé Coxinho», formado pelos companheiros, no qual interpretam músicas tradicionais.
Para a obreira da ASTA, “a importância da ruralidade prende-se com o facto de a sócio-terapia ser muito melhor desenvolvida num espaço rural, em que a natureza, a terra e o ecossistema ainda estejam respeitados do que um espaço cidade”.
A ruralidade é que deu, desde início, as ferramentas para a ASTA começar a desenvolver-se com características comunitárias, defende Maria José Fonseca: “Numa aldeia, pequena, rural, no interior do País, que devido à sua característica de desertificação e às suas casas abandonadas, foi-nos permitido recuperar as casas abandonadas e em ruínas, tratar das terras abandonadas e criar os núcleos familiares dentro da própria aldeia. E permitiu-nos ainda fazer o retorno à terra e à terapia da terra, cultivando aquilo que comemos, não ainda o suficiente, mas é algo que queremos fomentar. Depois, a inserção social faz-se muito mais espontaneamente dentro de um espírito de ruralidade do que em qualquer outro urbano. E descobrimos que em termos económicos é mais fácil, pois é mais económico em termos sociais… E mais do que tudo, os companheiros podem deambular pelas ruas, porque este espaço pertence-nos e nós pertencemos-lhe também”.

MAIS UMA CASA A CRESCER

A ASTA tem, neste momento, quatro casas a funcionar, edifícios recuperados na aldeia de Cabreira, onde pequenos núcleos de “companheiros” vivem em comunidade, partilhando espaços, sentimentos, responsabilidades e, muito importante, afectos. Dos 36 “companheiros” da ASTA, 22 residem nestas casas da instituição: Casa da Oliveira (criada em 2002), Casa Cristalina (2003), Casa da Fonte (2004 e sedeada na aldeia vizinha de Amoreira) e ainda a Casa S. Miguel (2010).
Na aldeia da Cabreira funciona ainda o atelier «3 Ofícios» e o atelier «Encanto», onde os companheiros desenvolvem algumas das actividades promovidas pela ASTA.
Em fase de ultimação está um novo equipamento, a Casa S. Francisco, também no interior da Cabreira, edifício doado pelo padre Manuel Domingues, onde fruto de uma candidatura ao PRODER, a instituição espera inaugurar em Julho uma cozinha pedagógica, onde serão feitas compotas e outros produtos naturais e tradicionais. Neste espaço irá nascer ainda uma nova cozinha, onde serão confeccionadas todas as refeições da instituição, que, actualmente, tem ainda um corpo de 30 colaboradores.
No sentido de alcançar uma produção agrícola em continuidade e que assegure a auto-suficiência da ASTA, a instituição apresentou um projecto para uma estufa à Fundação EDP.
Outro projecto que está na calha e que passa pela recuperação de uma casa na Cabreira, que actualmente apenas tem três paredes de pé, é o espaço «Trocas», onde, numa espécie de regresso ao passado, a instituição pretende criar um local de partilha e troca de produtos com os demais habitantes e eventuais visitantes.

ESPAÇO DE INOVAÇÃO

Maria José Fonseca é uma idealista, mas quem consegue fazer o que quer que seja sem ideais e, até mesmo, sem um pouco de utopia? A verdade é que, com poucos apoios – a instituição começou a funcionar em 2000 na sua própria casa com seis “companheiros” –, a ASTA tem vindo a desenvolver-se e é já hoje uma referência, apesar de localizada numa remota e pequenina aldeia do Portugal profundo.
“Um País que seja digno socialmente deve criar respostas para os seus cidadãos. As pessoas com deficiência são uma camada da população, logo também para elas temos que criar respostas com a mesma dignidade com que se criam respostas para os outros cidadãos… Estas pessoas não são franjas sociais, mas cidadãos que tendo a particularidade de uma deficiência não são, por isso, deficientes. Ter uma deficiência é diferente de ser deficiente. Ter uma deficiência, não implica que não se tenha capacidades”, sustenta a presidente da ASTA, criticando o «status quo»: “O País tem que arranjar respostas para estas pessoas, onde elas possam dar o seu melhor como cidadãos, como seres humanos, onde possamos também dar-lhes alimento para que o melhor que neles exista possa sair. E tem que ser esse o espaço e não um reduto onde as franjas sociais se escondem. É politicamente correcto dizer que há espaços para os idosos e para os deficientes, mas para quê? Para os guardar, para os esconder, para não incomodarem no nosso modo de vida? Não, a ASTA tem um espaço onde pretende criar, inovar e viver com essas pessoas. É um privilégio para os colaboradores viverem neste tipo de comunidade terapêutica, porque enriquecem como seres humanos. Logo estes seres são valores, são uma mais-valia que nos ensinam muitos valores sociais e que não podemos menosprezar”.

NÃO VIVEMOS EM REDOMAS

SOLIDARIEDADE - Qual a grande mais-valia desta instituição?
Mª JOSÉ FONSECA
- Somos diferentes, porque aceitamos que o ser humano é falível e que nenhum projecto é perfeito. Por isso, não vivemos em redomas de vidro, que é o que se tenta fazer em muitas instituições, onde os meninos estão intocáveis. Eles aqui aprendem a vida de uma forma autêntica e isso é fantástico.

E qual a grande mais-valia destes 15 anos de vida da ASTA?
A grande mais-valia é isto que aqui se criou, num espaço escondido do interior do País, quase em Espanha… Criou-se um pólo de bem-estar, de criação, de harmonia com a natureza, um pólo de esperança, no meio destes barrocos ancestrais, onde por entre eles se ouve um eco de futuro. Sinto intuitivamente que aqui há um pronúncio de futuro, uma outra hipótese de vida que há 15 anos não existia e que eu antevia. Bem, na altura chamaram-me louca!.

Pedro Vasco Oliveira (texto e fotos)

 

Data de introdução: 2013-06-07



















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