Na mensagem dirigida a Mário Soares e enviada à reunião da Aula Magna da Universidade de Lisboa, do fim-de-semana passado, reunião essa organizada e dinamizada pelo antigo Presidente da República, com a ambição de federar todas as esquerdas – parlamentares, sociais, sindicais, ou partidárias em geral – na oposição ao actual Governo, José Pacheco Pereira, em determinado passo do seu depoimento escrito, que constitui a sua participação no debate, suscita, entre outras, a interessante e “vexata” questão de saber se o PSD pode ou deve ser classificado como um partido da direita.
A questão é posta nos seguintes termos: “A ideia de que para alguém do PSD, para um social-democrata, lhe caem os parentes na lama por estar aqui, só tem sentido para quem esqueceu, contrariando o que sempre explicitamente, insisto, explicitamente, Sá Carneiro disse: que os sociais-democratas em Portugal não são a direita.”
Mais adiante, prosseguindo no mesmo registo, José Pacheco Pereira salienta: “Para um social-democrata poucas coisas mais ofensivas existem do que esta desvalorização da dignidade do trabalho, tratado como uma culpa e um custo, não como uma condição, um direito e um valor.”
Esta arrumação do PSD segundo os cânones da tradicional divisão direita/esquerda constitui o fulcro de um debate que já vem praticamente desde a fundação daquele Partido.
Balizam esse debate as palavras fundadoras de Francisco Sá Carneiro, que remetiam para uma construção ideológica tributária da doutrina social da Igreja – recorde-se o papel determinante de Francisco Sá Carneiro no processo que, na fase inicial do marcelismo, conduziu ao termo do exílio do Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes e ao seu regresso à Diocese -, de um certo reviralhismo republicano, vindo da Oposição à ditadura, nomeadamente do Porto e também da burguesia liberal que desde há muito tempo constitui a mais vera face do Porto e dos portuenses.
(Convém lembrar a genuína radicação de Sá Carneiro na burguesia liberal do Porto e do Norte.)
Neste sentido, é interessante assinalar que uma parte significativa dessa burguesia portuense, que constituiu a iniciativa e o impulso inicial, determinante da candidatura do General Humberto Delgado à Presidência da República, em 1958, tenha aderido ao PSD logo em 1974 – como foi o caso de Artur Santos Silva, Artur Andrade, Olívio França, Jaime Vilhena de Andrade, Amadeu Morais, acompanhados de outros antifascistas apoiantes de relevo do General, como os então exilados Emídio Guerreiro ou José Augusto Seabra – constituindo, nesses tempos agitados de 1974, uma espécie de caução de legitimação revolucionária do Partido.
Data desses tempos iniciais e fundadores o pedido de Sá Carneiro para a filiação do PSD na Internacional Socialista, recusado por via da oposição de Mário Soares, que pretendia dispor – como veio a suceder - do exclusivo dessa pertença ideológico-formal, como ainda agora o próprio confessou, com o jeito travesso que mantém – e perante a benevolência geral de que sempre dispôs.
Sá Carneiro, Emídio Guerreiro – revolucionário romântico em várias intentonas contra Salazar e Marcelo –, Nuno Rodrigues dos Santos – republicano antifascista, jacobino, mação antigo e aceite: nenhum dos dirigentes do período inicial do Partido é compatível com a profissão de um alinhamento à direita.
Nem Mota Pinto, líder fugaz e meu saudoso professor em Coimbra, uns largos anos antes.
Mesmo Cavaco Silva, que lhe sucedeu, e de quem se não conhecia passado que permitisse a sua arrumação no lado esquerdo da tabela que nos tem servido de critério, sempre deixou permanecer uma grande ambivalência quanto a estes alinhamentos.
A este respeito, é interessante lembrar – privilégio de só os velhos dispõem – que foi com Cavaco Silva que José Pacheco Pereira entrou como deputado do PSD, em 1987 – vindo directamente do Clube da Esquerda Liberal, que fundara uns anos antes.
Ainda me lembro de que o cavaquismo, também talvez para buscar, como em 1974, uma legitimação e pergaminhos fora de si próprio, se classificava nos seus tempos de afirmação inicial com o partido da esquerda moderna.
Mas tanto faz esquerda moderna, como esquerda liberal – noções aliás equivalentes: o que aqui se pretende relevar é a imagem que o Partido quer representar de si próprio para o exterior.
Um partido de esquerda.
Esta ambivalência do cavaquismo quanto ao tema de que venho tratando hoje permanece até ao presente.
Ainda agora, sempre que os analistas e comentadores procuram evidenciar – e não precisam de grande esforço para isso – crispações e fissuras entre o Presidente da República e o Governo, a interpretação linear é a de que o Presidente representa uma sensibilidade mais atenta aos desfavorecidos e aos pobres, à justiça social e ao emprego – mais situada do lado esquerdo, o do coração -, por contraponto à invocada estratégia de empobrecimento geral que o Governo prossegue, com a proletarização da classe média, o alargamento das camadas “lumpen” da população e a explosão do desemprego, para embaratecer os custos do trabalho e desse modo servir os interesses do capitalismo financeiro – para caracterizar o que hoje é genericamente chamado o neo-liberalismo.
Tanto quanto me lembro – e lembro-me de muito - creio que foi Durão Barroso o primeiro líder do PSD a assumir a classificação do Partido como sendo de direita.
Essa classificação era provavelmente verdadeira, correspondendo à emergência de uma elite “sulista, elitista e liberal” - para recorrer às melhores fontes …
E essa convicção andava de par com o ar do tempo – embora ao arrepio da imagem que o Partido sempre dera de si próprio.
No princípio do século XXI, e até hoje, tem prevalecido na Europa a que pertencemos uma vulgata ideológica, comum a partidos sociais-democratas e conservadores, que consiste fundamentalmente em tonsurar os direitos dos cidadãos, transferindo das pessoas para o grande capital os recursos e os bens, empobrecendo e desempregando.
(A polémica da TSU, há uns meses, era bem um emblema dessa vulgata.)
É, na verdade, essa a receita que nos tem sido aplicada nos últimos 10 anos.
Mas parece que começa finalmente a perceber-se, nessa Europa a que, pelo que temos visto, não sei se vale a pena pertencermos, que, a partir de certo ponto – a que já chegámos -, a pobreza e o desemprego constituem um risco real para a subsistência da democracia política.
E para a própria acumulação do capital.
E que haverá que voltar a apresentar aos povos da Europa uma escolha verdadeira: uma opção conservadora; ou uma opção progressista.
Após tão largo excurso, voltámos ao ponto de partida, de onde nunca deveríamos ter saído: : “Para um social-democrata poucas coisas mais ofensivas existem do que esta desvalorização da dignidade do trabalho, tratado como uma culpa e um custo, não como uma condição, um direito e um valor.”
Para que lado vai pender, nesse próximo futuro, a social-democracia à portuguesa?
(Peço desculpa a Carlos de Oliveira, por roubar o título de um livro seu, de poemas, para título de crónica de assunto de prosa tão rasteira.
Mas, para não sair do espaço, nem do livro, nem do Autor, “como dormir /com estas flechas/ brancas na memória?”
Henrique Rodrigues – Presidente da Direcção do Centro Social de Ermesinde
Data de introdução: 2013-06-11