Manuela Mendonça chegou à CNIS durante o primeiro mandato do Padre Lino Maia. Integrou a direcção durante um ano; no segundo mandato fez parte da Mesa da Assembleia Geral em lugar discreto; no terceiro e actual mandato aceitou o convite para ser a Presidente do mesmo orgão.
Manuela Mendonça diz que é demasiado “incómoda” para estar numa direcção. Apesar disso, lidera a vetusta e dinâmica Academia Portuguesa de História desde 2006, sendo a primeira mulher a desempenhar esse papel; e há décadas que é um dos rostos do Secretariado Diocesano de Lisboa da Obra Nacional da Pastoral dos Ciganos. Desde muito jovem entregou-se ao trabalho social nesta IPSS, que lida com gente desfavorecida de sete dos piores bairros lisboetas, com o propósito de ajudar cada um a “encontrar-se como Pessoa”, lema cada vez mais em vigor na sua vida. Manuela Mendonça costuma dizer que trabalha “com a fina flor da miséria”.
Professora da Faculdade de Letras de Lisboa, aposentada desde o ano passado, mas ainda colaboradora na Universidade, está ligada aos mestrados e aos doutoramentos enquanto aguarda pela jubilação: “Agora dão-nos uns rebuçados... continuo a colaborar, dou umas aulas sem receber. É uma coisa agradável.”
Chega à CNIS através da Pastoral dos Ciganos....
Eu sou muito incómoda e dei um bocado nas vistas por que estava sempre a reivindicar. Nós temos na Pastoral um trabalho muito difícil porque trabalhamos com gente que vive nos piores bairros de Lisboa. O nome Pastoral dos Ciganos é abrangente, mas não tanto quanto o trabalho que se faz. É um trabalho social, muito mais do que evangelização directa. Estamos nos locais para fazer trabalho social. É um chavão, mas verdadeiro: não se pode pregar a estômagos vazios. Nós ajudamos as pessoas a serem Pessoas, valorizando-as enquanto Pessoas, buscando as suas próprias soluções e através dessa presença e desse sentir do Ser Pessoa, hoje tão assumido pelo Papa Francisco, ser presença do evangelho. Sendo uma instituição confessional, claramente ligada a pessoas comprometidas em Igreja, neste caso na Igreja Católica, foi desde muito cedo essa a opção por este caminho social. Nós contactamos com estas imensas dificuldades, insuspeitas para os políticos a quem não passa pela cabeça a miséria que vai neste país. Este contacto directo com as populações e as suas dificuldades levam-nos a ser mais reivindicativos. E por isso eu sempre apareci na CNIS com uma presença reivindicativa.
Desempenhou vários papéis...
Cheguei à direcção no primeiro mandato do Padre Lino, mas como sou muito incómoda no segundo mandato fiquei como terceira secretária da Assembleia Geral. E agora o Padre Lino desafiou-me para liderar a AG e eu aceitei.
E, a partir da Mesa da Assembleia Geral da CNIS, como é que vê o mundo social solidário?
Eu, de facto, só vejo a Assembleia (Risos...). É uma questão difícil. Quando aceitei este convite levava como mote pôr ordem nas reuniões. Neste momento acho que as pessoas entenderam o que é uma Assembleia Geral e acho que tem corrido muito bem. Julgo que a presença dos associados continua a ser muito significativa o que dá um sinal de grande vitalidade. Acho que a CNIS é ainda um pólo aglutinador, muito mais do que as UDIPSS, com a consciência das variadas tendências que ali estão dentro, procurando de facto responder a todos. Nesse aspecto acho que o padre Lino tem feito um trabalho notável.
É uma liderança tranquila...
Sim, até acho que é demasiado tranquila. Ele não é uma homem de conflitos. Em linguagem popular... ele não é um homem de pegar o touro pelos cornos, é mais de cernelha. Mas devo admitir que tem conseguido bons resultados. Se fosse comigo teria feito as coisas mais à bruta, mas seguramente de forma menos eficaz. Às vezes digo-lhe que respeito a forma de luta que ele usa, mas considero que em certas ocasiões devia ser mais agressivo. Vou dar-lhe um exemplo: nesta coisa dos 0,5% para o fundo de solidariedade, que não tem pés nem cabeça, eu teria partido a loiça toda se estivesse no lugar dele. Ele partiu apenas parte da loiça, conseguiu os resultados possíveis e diminuiu os danos. Mas, volto a falar da minha instituição, que tem tão pouco, não é justo que participe solidariamente num fundo ao qual depois vai ter que concorrer para subsistir, sendo obrigada a uma burocracia para a qual não está preparada.
E a CNIS, tem-se afirmado?
Sim, transformou-se num verdadeiro parceiro social. Há quem diga que se tem afirmado até demais. Eu não acho. Penso que pode e deve ainda ir mais longe. Hoje é reconhecida, é solicitada e é sobretudo respeitada. A CNIS é um parceiro social de topo. O padre Lino tem feito um excelente trabalho e tem tido um óptimo colaborador que é o João Dias.
Julga que deviam continuar nas próximas eleições?
Diz-se que em equipa que ganha não se mexe, mas a permanência prolongada pode ser prejudicial. Devia haver alguma remodelação, não tendo que ser a do presidente. Tem havido rotatividade nas equipas, mas a escolha ainda pode ser melhor.
A SOLIDARIEDADE
Como avalia a solidariedade organizada e a acção das IPSS?
Nós vivemos num país de faz de conta. E nesta sociedade e nesta organização é assim que funcionamos. Nós temos ao mesmo nível instituições que trabalham com gente pobre, com toda a espécie de dificuldades, temos outras assim-assim e temos outras muito boas. Todas são IPSS e quando se candidatam a protocolos todos recebem os mesmos valores de acordo com as actividades que fazem. Sou muito sensível a isto, estou no terreno há muito tempo. Nós metemos tudo no mesmo saco. Instituições que vivem muito bem e instituições que vivem muito mal. E depois o financiamento é todo igual. Veja só... Ando em luta com um Fundo de Compensação Sócio-económica... há três anos que não nos pagam. Como é que nos podemos aguentar?
O Estado não faz diferenciação?
A discriminação positiva e a solidariedade estão todas metidas no mesmo saco, não resulta. O que é uma instituição particular de solidariedade social? Devia haver um grande debate sobre isso, eu posso estar errada, mas acho que a solidariedade social é uma acção que se exerce onde ela faz falta. Não é para aguentar um colégio com metade dos meninos ricos, que podem pagar, e acrescentada de alguns meninos carenciados que depois justificam o financiamento... Isso é solidariedade? Tenho dúvidas. E podia dar exemplos noutros sectores como nos idosos. Eu acho que há aqui um saco muito grande todo atado da mesma forma. Queremos dar a ideia de um país em que a miséria não é assim tanta. E a solidariedade acaba por disfarçar a miséria real.
A relação com o Estado evoluiu. Porventura continua a tratar como igual aquilo que é muito diferente, mas reconhece que há muito maior transparência...
Não ponho isso em causa. Às vezes não há equilíbrio. Dantes as instituições tinham acesso àquilo que se convencionou chamar de contratos atípicos. Nós procuramos ir de encontro à dimensão da Pessoa nas suas diferentes realidades. Esses contratos tinham isso em conta. Eu podia dizer em determinado contexto que para trabalhar dez crianças precisava de uma educadora porque têm muito mais dificuldades que outras e o contrato atípico ia dar resposta àquela realidade concreta. Ou no trabalho com família-comunidade. Costumo dizer que é um trabalho individualizado que não corresponde aos padrões da Segurança Social no que toca às assistentes sociais, por exemplo. Dantas havia essa diferença. Ao desaparecer isso com ideia da discriminação positiva deixaram-se cair os casos muito difíceis.
Tem-se falado muito da necessidade de sustentabilidade das instituições. Como encara essa realidade?
Compreendo que por causa da crise se fale da necessidade da sustentabilidade das IPSS... mas com o exagero desse discurso, andamos a fazer um favor ao Estado. Estamos a preparar o caminho para que o Estado se retire das suas obrigações.
Há cada vez mais chavões e novos conceitos. Voluntariado...
Apesar de estar muito na moda o voluntariado, os prémios do voluntariado, os congressos do voluntariado... eu acho uma coisa horrível esta profissionalização do voluntariado. Os bancos de voluntariado, na sua grande maioria, estão à procura de emprego. É uma moda terrível.
Responsabilidade Social...
Não quero ser injusta na medida em que, de vez em quando, aparece uma ou outra empresa que dá uma ajuda, mas na base o que está em causa é o interesse da própria empresa e não o das instituições sociais. Há um desvirtuamento original que me incomoda. Muito resumidamente digo que eles dão um chouriço a quem lhes dá um porco. E o porco é a publicidade, a notoriedade, os protocolos, e não a dádiva. No mesmo saco coloco a mania das fundações... Dantes a gente pedia uma ajuda a uma empresa e vinha ou não vinha um apoio mecenático. Agora tudo passa pelas fundações que têm normas muito específicas que obrigam, a quem quer obter um apoio, a preencher dez mil papéis, projectos muito complexos, e nós precisamos de ter – nós não, que não podemos –, quem se candidata precisa de ter ao seu serviço pessoas especialistas para fazerem projectos de candidatura.
O PAÍS E O FUTURO
Na sua qualidade de especialista em História, presidente da Academia Portuguesa de História, como analisa este momento que o país vive? Como é que isto vai ficar para a História de Portugal?
(Risos...) Isso não sei. Nós não adivinhamos. Costumo dizer aos meus alunos que o mal que se passa connosco é que os nossos políticos não sabem História. De facto, a História não se repete nem se adivinha, mas há situações similares em momentos diferentes. Bastava conhecer os contextos e podiam-se evitar muitos disparates. É a chamada História Prospectiva que esteve muito na moda e de que hoje se fala pouco. O futuro eu não sei. Quando ao presente, apresenta-se como uma realidade dupla. Por um lado percebemos que são precisas medidas que nos criam dificuldades, mas não pode ser de outra maneira, mas por outro lado perguntamos se há direito em aplicá-las. Mas eu coloco-me noutra perspectiva: preocupa-me o estado miserável a que este mundo chegou e a Europa muito em concreto. Em tempos falou-se da revolução industrial, nas atrocidades cometidas e na exploração das pessoas que deu origem a todos os movimentos que a gente conhece. Estaremos melhor hoje? O Papa Francisco é para mim neste momento o modelo máximo, o farol. Ele disse muitas coisas que eu sentia, só que se fosse eu a dizê-las ninguém me ligava. O principal é ele dizer que nós vivemos num mundo onde ganhou a economia e a finança e desapareceu a Pessoa. Num século civilizado como o século XXI há direito que haja gente a passar fome? Qual é a moeda da fortuna, a sorte, de alguns? Quantos sacrificados, atirados para a sarjeta? Onde está a noção da Pessoa? A Pessoa desapareceu... Haverá alguma coisa mais importante? Por isso preocupa-me menos o que se passa em Portugal do que o estado a que este mundo chegou e sobretudo esta Europa. Eu acho, por exemplo, que a Alemanha está a ganhar a terceira guerra mundial e ninguém dá por isso... É a vitória de um liberalismo furioso, selvagem, em que tão poucos têm tanto e tantos não têm nada. Isto é o mais sensível, para mim. Devíamos ser capazes de liderar um movimento em que conseguíssemos convencer toda a gente de que somos todos Pessoas. Onde é que está a dignidade humana? Há um calcamento indigno.
É quase uma ideia de revolução marxista...
É evangélico. Um dia na faculdade, para minha surpresa, um colega marxista convidou-me para uma lista para o Conselho Pedagógico explicando o convite com o facto de eu ser uma católica progressista. Eu disse-lhe que estava enganado: Eu sou só uma católica, cristã. No evangelho está lá tudo.
Ainda falta cumprir Portugal?
Ao longo da História Portugal teve muitas crises. Esta não é a única que Portugal atravessou nem é a pior. É a nossa. Fomos capazes de superar as crises noutros tempos e nós hoje também seremos capazes de superar a nossa. Acredito que Portugal vai vencer. Vamos ultrapassar esta fase. Ainda vamos cumprir Portugal.
V. M. Pinto – Texto e Fotos
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