1– PROTECÇÃO SOCIAL
A - A legitimação da acção do Sector Solidário no âmbito da protecção social resulta, em primeiro lugar, de uma razão histórica: a solidariedade sempre foi, no decurso da história da Pátria, antes do mais, a expressão de um dever e de uma vocação da sociedade e das suas organizações.
Tal prática multissecular conferiu-lhes uma competência e uma ciência que não tem concorrentes.
Constitui símbolo dessa expressão a acção das misericórdias, nos últimos 500 anos, e a acção dos mosteiros e conventos na assistência pública, mesmo de tempos anteriores ao aparecimento das Irmandades da Misericórdia.
Esse compromisso histórico da Igreja, e das suas organizações, com os necessitados, com o “próximo” -, para uma aproximação semântica com os valores espirituais onde se funda tal acção – tem hoje, desde logo no processo de construção europeia e por importação da “Encíclica Quadragesimo Anno”, uma importante consagração ao nível dos grandes princípios estruturantes do projecto europeu.
Desde logo, o princípio da subsidiariedade – que se traduz, no que à acção e protecção social respeita, nomeadamente na prestação directa de serviços aos utentes, na preferência pela entidade mais próxima, numa escala territorial, e pelos corpos intermédios, antes da esfera pública, no que respeita à natureza das organizações.
B - Não deixa, no entanto, de se salientar que ao Estado, mesmo reformado, cabe garantir a efectivação dos direitos sociais inscritos na Constituição, e a respectiva universalidade deles.
Universalidade que, no actual momento e contexto, o Sector não está em condições de assegurar em exclusividade.
Deste modo, a intervenção das Instituições do Sector Solidário deverá pautar-se, como vem sucedendo, pela subsistência do modelo de parceria público-social, parceria que deverá ser entendida e consagrada como o ponto de convergência dos aludidos princípios da universalidade dos direitos e da subsidiariedade, garantindo, do mesmo passo, e na esfera da predominante responsabilidade pública, a sustentabilidade da acção do Sector Solidário no âmbito da sua intervenção social.
Refira-se que a prevalência, que defendemos, do princípio do acolhimento prioritário aos mais desfavorecidos ou carenciados, para não colocar em risco a sustentabilidade das organizações, exige a referida responsabilidade pública, ao nível do respectivo financiamento, com o fundamento de ser serviço público o que assim é prestado pelas Instituições.
Dentro desses pressupostos, as Instituições do Sector Solidário acolhem positivamente a proposta do documento de reforço da contratualização: “Reformar o Estado é, na área social, desenvolver uma política de maior contratualização com as IPSS …”, como refere o Documento em análise.
Cabem no âmbito desta pretensão a atribuição de competências legais – em vez da actual mera delegação delas - ao Sector no que respeita à definição e acompanhamento dos programas de inserção do RSI, à gestão dos programas de amas e acolhimento familiar, e à gestão dos equipamentos sociais, medida esta aliás prevista no Documento em questão.
C - Quanto ao âmbito e extensão de eventuais atribuições e delegações de competências, bem como à definição dos serviços a contratualizar, adiante nos deteremos com mais pormenor, a propósito da coesão social e territorial.
Ainda a este propósito da protecção social e do desenvolvimento das respostas sociais por parte das IPSS, suscitam as maiores reservas, quer do ponto de vista dos princípios, quer da sua eficácia prática, algumas sugestões que se vão ouvindo sobre a alteração do modelo de financiamento, no sentido da adopção do chamado cheque-família.
A CNIS opõe-se frontalmente a tal alteração.
D - O PES – Programa de Emergência Social – apresentou importantes inovações no que respeita à simplificação administrativa e flexibilização de requisitos de funcionamento de respostas sociais, nomeadamente em creche e lar de idosos.
Nessa medida, saúda-se a posição assumida no documento: “Reformar o Estado é simplificar procedimentos. Nesse plano, os novos regimes de licenciamento industrial, ambiental, pecuário ou florestal, tal como a agilização dos regulamentos dos equipamentos sociais, são elementos críticos, necessários mas não suficientes, da redução da burocracia económica e social.”
Pena que, por vezes, tal justo propósito seja vítima de desatenções que pervertem o seu sentido.
É o caso, que se refere por ser recente e exemplar – no mau sentido -, da obrigação de guias de transporte para as refeições dos utentes dos serviços de apoio domiciliário, ou para os produtos de higiene e limpeza das residências dos mesmos utentes, que um fundamentalismo fiscal impôs em 2013 às IPSS – e que, felizmente, a Lei do Orçamento de Estado para 2014 veio a corrigir.
2 - SAÚDE
A - Neste âmbito, as Instituições têm apresentado a sua disponibilidade para, no contexto da contratualização a que se refere o Documento, colaborarem, com os seus equipamentos, no funcionamento de uma rede hospitalar de proximidade – de que a prevista devolução de hospitais para as Misericórdias constitui um sinal positivo, bem como em equipamentos de cuidados diferenciados – como é o caso do Centro de Reabilitação do Norte ou do Hospital da Prelada, da Santa Casa da Misericórdia do Porto.
Têm manifestado igualmente disponibilidade para a celebração de convenções, no âmbito do SNS, ou para a prestação de cuidados de saúde primários, com consultas e serviços de enfermagem.
O mesmo se passa com o desenvolvimento da resposta social mista – Saúde e Solidariedade Social -, de Unidades de Cuidados Continuados, resposta cuja concepção teórica se deverá assinalar positivamente, faltando apenas assegurar as condições financeiras e a flexibilização de requisitos que assegurem a viabilidade de funcionamento de tais unidades.
B - Do mesmo passo, as Instituições Particulares do âmbito da saúde mental já assumem, na vertente ocupacional, os cuidados terapêuticos complementares da assistência médica, encontrando-se em estudo no seio da CNIS a organização de um plano de acompanhamento social, a cargo das Instituições, que permita a eficaz implementação do Plano de Saúde Mental já aprovado mas ainda de escassa implantação efectiva.
Adiante também se fará referência à vertente da Saúde, quando se tratar o aspecto da coesão social e territorial.
3 - EDUCAÇÃO
A - Nesta matéria, a posição da CNIS é a de que incumbe ao Estado a oferta de uma rede pública de educação no que respeita à escolaridade obrigatória, sem prejuízo da cooperação das Instituições Particulares no plano do combate ao abandono precoce e ao insucesso escolar, através da rede de respostas sociais que mantêm, nomeadamente em termos de actividades de tempos livres, extracurriculares, ou do programa de fornecimento de refeições às crianças que frequentam o ensino básico.
Quanto a este nível de cooperação, haverá que evitar a repetição de medidas públicas de concorrência desleal, como aconteceu com o programa das AEC – Atividades de Enriquecimento Curricular -, lançadas pelo Ministério da Educação em 2008, desprezando a rede solidária existente – que cobria um terço da população escolar entre os 6 e os 10 anos – e promovendo a gradual desarticulação e encerramento da correspondente resposta social que as Instituições mantinham.
Deve ainda realçar-se, no que a este ponto diz respeito, o facto de, historicamente, terem sido as IPSS pioneiras na criação e expansão de uma rede de equipamentos e serviços para ocupação de tempos livres de crianças e jovens, no sentido de compatibilizar a frequência escolar dos filhos com a vida profissional dos pais – o que aumenta o grau de censura relativamente à referida ofensiva do M. Educação contra essa resposta social.
B - No que respeita à educação pré-escolar, importa igualmente lembrar que se trata de uma rede surgida inicialmente por iniciativa do Sector Solidário – e que vem merecendo igualmente uma persistente ofensiva por parte do mesmo M. Educação, traduzida na construção de Centros Escolares, com salas para jardim de infância, em locais onde já se encontram em actividade jardins de infância da Rede Solidária.
Tal estratégia, que ofende os princípios básicos do planeamento e que se traduz, portanto, na realização de investimentos inúteis, tem conduzido a uma redução da procura nos equipamentos da Rede Solidária, na medida em que as autarquias locais que administram os equipamentos da rede pública não cumprem com grande frequência as determinações legais que impõem escalões e valores de comparticipação das famílias, na chamada “componente de apoio à família”, segundo uma tabela idêntica à que é praticada nas IPSS: nuns casos, as autarquias apenas cobram metade do que seria devido, noutras, nada cobram mesmo.
Tais perversões apenas poderão ser afastadas se existir uma planificação vinculativa no que respeita à criação de equipamentos sociais, sob pena de o País continuar a delapidar recursos com a realização de investimentos inúteis ou redundantes.
C - Quer quanto à componente educativa da educação pré-escolar, quer quanto ao ensino obrigatório, a CNIS defende a manutenção das suas características de gratuitidade e universalidade.
A CNIS defende igualmente o princípio de que o percurso educativo começa na creche, devendo a oferta de lugares nesta resposta social crescer adequadamente à procura que, nomeadamente nos grandes centros urbanos, se verifica quanto a ela – dentro da perspectiva de que, quanto mais precoce o início do percurso educativo, mais aprofundada será a igualdade de oportunidades que uma sociedade democrática deverá proporcionar.
D - Ainda neste plano do Sector da Educação, o Sector Solidário não pode deixar de anotar uma omissão no Documento: as problemáticas relativas aos cidadãos portadores de deficiência.
As posições que a CNIS vem defendendo a este propósito, e que aqui se deixam escritas, vão no sentido da manutenção do princípio da escola inclusiva, na perspectiva de que o espaço escolar deverá ser pertença de todas as crianças e jovens em idade para tal.
Tal não prejudica o entendimento, também ele estável no seio do Sector e das suas Instituições, de que os particulares constrangimentos de que sofrem os cidadãos portadores de deficiência justificam, em homenagem ao princípio da máxima aprendizagem e potenciação das capacidades de cada um e tendo em conta que a estimulação precoce de tais capacidades constitui requisito fundamental para um aumento da qualidade de vida de tais cidadãos, justificam, dizíamos, a cooperação das Instituições do Sector, em articulação com as escolas, no desenvolvimento de tais capacidades.
A esse respeito, importa não esquecer o facto de terem sido as Instituições particulares, criadas por iniciativa dos familiares das pessoas com deficiência, pioneiras no estudo das causas e na reparação dos efeitos decorrentes da deficiência, congénita ou adquirida.Muito antes de o Estado se preocupar com eles.
Até por essa razão, do trabalho de décadas e da dedicação pessoal, é nas Instituições que reside o mais aprofundado conhecimento e a mais completa ciência sobre as situações em causa – conhecimentos que são imprescindíveis para o sucesso educativo destas crianças e jovens.
4 – COESÃO SOCIAL E TERRITORIAL
A - As IPSS constituem uma rede de capilaridade que cobre todo o território nacional, sendo as entidades que, numa escala de proximidade, mais acompanham as pessoas, as famílias e as comunidades.
A recente alteração administrativa do mapa do País, nomeadamente através do processo de fusão de freguesias – aumentando a escala territorial, mas afastando o núcleo da periferia -, reforçou essa característica das Instituições, que deixaram de ter concorrência, na esfera da organização pública, nessa aproximação aos cidadãos.
As IPSS são sensíveis ao processo de desertificação do País, ao abandono do interior pelas populações, ao envelhecimento dessas comunidades, ao encerramento de serviços públicos, simultaneamente causa e consequência dessa desertificação humana da periferia interior de Portugal.
Em muitas localidades, são ainda elas que, do ponto de vista do emprego e dos cuidados à população, mantêm a viabilidade, mesmo que precária, dessas comunidades.
A CNIS encara, com sentido patriótico, um modelo diferenciado e assimétrico de cooperação entre as IPSS e os vários serviços, públicos ou de interesse geral, assente em formas contratualizadas caso a caso, de maneira a que tais instituições possam assegurar a prestação de serviços que deixaram de ser prestados pelos seus prestadores típicos.
É o caso, a título de mero exemplo, de manutenção de um balcão de recepção e distribuição de correspondência, em caso de extinção de uma estação dos CTT, ou de prestação de cuidados de enfermagem ou de atendimento clínico nas instalações da IPSS, em caso de encerramento de um centro de saúde, ou de colheitas de sangue para análise – recordando que muitas delas estão abertas durante todo o dia e mesmo durante a noite.
Para tanto, seria mister que os Serviços do Instituto da Segurança Social abandonassem a concepção de quadros de pessoal das IPSS espartilhados e vinculados exclusivamente por resposta social, viabilizando a gestão dos recursos humanos de forma flexível, compatível com a natureza diferenciada de novas eventuais competências ou atribuições.
B - Ainda nesta perspectiva, as IPSS encaram como área de expansão das suas actividades programas e acções promotoras do desenvolvimento social local, nos termos que vierem a ser definidos no próximo Quadro Comunitário de Apoio, em iniciativas portadoras de princípios de inovação social, no sentido de restituição de vitalidade ao interior do País.
O modelo de funcionamento de novas competências, neste quadro, poderia replicar, de certa forma, um modelo de arreigada tradição nos meios rurais, no interior do País, que ainda subsiste em algumas comunidades e que detém um perfil de largo espectro no elenco das suas actividades: as Casas do Povo.
Não se trataria de reconstituir, com autonomia jurídica, esse pretérito organismo corporativo, mas de configurar uma matriz de funcionamento de um estabelecimento atípico, no seio de uma IPSS existente – não como uma espécie de sucursal, ou delegação, dos serviços públicos, mas para o exercício de competências próprias, por atribuição legal ou por contratualização, como foi referido.
5 – REFORMA DE ESTRUTURAS
No modo de ver da CNIS, haveria ganhos de eficiência e de racionalidade com algumas modificações orgânicas.
Num registo breve, a saber:
a) - Regulação e fiscalização da actividade do Sector a cargo de uma entidade reguladora independente da Administração.
b) - Revisão da estrutura orgânica da Segurança Social, nomeadamente no que respeita à Acção Social.
Sem cuidar agora de saber se o sistema previdencial exige uma estrutura centralizada, temos como certo que a prossecução das modalidades de acção social não só não a exige, como a repele.
À acção social, a noção de proximidade é dela verdadeiramente constitutiva.
Os anos mais recentes, em particular de 1997 em diante, têm visto uma progressiva centralização dos serviços de acção social, no âmbito do ISSS.
Haveria que rever esse percurso.
c) – Restauração da previsão inicial quanto ao formato da Rede Social – que, mais do que um colégio representativo das entidades do Sector Social, em registo de planeamento em parceria, se vem convertendo num instrumento vinculado ao poder municipal.
d) – Consciência da natureza da escala de intervenção das IPSS e do Sector Solidário em geral, no que respeita à proximidade às populações e às respectivas carências, quando houver que debater transferência de poderes ou de atribuições às autarquias locais.
O Presidente da CNIS,
LINO MAIA
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