A propósito do referendo que levou à integração da Crimeia na Federação Russa, não faltou quem recuperasse para a memória colectiva o processo que levou à independência do Kosovo. O presidente russo não cessa de recordar esse processo como argumento definitivo para justificar o seu comportamento na crise que levou a Crimeia àquela integração.
Proclamada unilateralmente a 17 de Fevereiro de 2008, a independência do Kosovo não foi reconhecida ainda por alguns estados, embora o tenha sido pela ONU. E entre os países que recusaram de imediato o novo estatuto daquele território, contava-se a Rússia. No entanto, apesar das semelhanças, o processo histórico que se desenrolou nestas duas regiões europeias não é idêntico de todo.
Berço da nacionalidade sérvia, o Kosovo foi-se albanizando ao longo do tempo, de tal modo que, por alturas da proclamação da sua independência, os habitantes de língua e cultura sérvia constituíam menos de 10% da sua população. Durante alguns séculos, aquele território foi recebendo vagas de imigrantes oriundos da Albânia, os quais, já depois de se terem tornado maioria, sempre foram sempre tratados como cidadãos de segunda, em termos sociais, políticos e culturais. Sobretudo no tempo de Slobodan Milosevic e do seu nacionalismo exacerbado.
A opressão exercida pelas autoridades sérvias sobre os kosovares albaneses levou a comunidade internacional a intervir naquele território, a fim de proteger a maioria da sua população de um genocídio físico e cultural. Foi este objectivo que esteve na origem de uma guerra que terminou numa declaração de independência que muitos países nunca aceitaram, a começar pela Rússia. Esta, em nome da sua ligação histórica com a Sérvia e da sua necessidade de afirmação perante os Estados Unidos que apoiavam os kosovares independentistas.
Vladimir Putin afirmou, nessa altura, que “o reconhecimento da independência do Kosovo seria ilegal e imoral”, enquanto, na mesma linha, o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, que já era Sergei Lavrov, lembrava ser “a primeira vez que se abordava a saída de uma região de dentro de um estado soberano”. O facto é que o precedente estava criado e aí temos a Crimeia para confirmar que se tratou mesmo de um precedente. A peça é a mesma, só o palco é que mudou. O palco e também o texto, porque americanos e russos defendem agora para o problema da Crimeia o contrário do que afirmavam há seis anos para o problema do Kosovo
Incoerências e contradições? Certamente. Mas a História está cheia delas e estas não vão ficar por aqui, porque a política é feita de contradições. Sobretudo, a chamada política externa.
A.J.Silva
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