Há 120 mil crianças em risco em Portugal. São assim consideradas, por exemplo, aquelas que vivem em habitações degradadas, aquelas cujos pais são toxicodependentes ou alcoólicos, aquelas que faltam à escola sucessivamente, aquelas que têm consultas marcadas e nunca aparecem.
Dessas, um terço estão numa situação de perigo. Estão devidamente referenciadas e já houve tentativas, falhadas, de intervenção de entidades públicas ou privadas.
Estão em perigo face à saúde, segurança, educação e bem-estar. Ao todo, foram comunicados 23 mil destes casos, mas haverá outros tantos sem acompanhamento por parte das 245 Comissões de Protecção de Crianças e Jovens espalhadas pelo país.
Com o julgamento do caso Casa Pia prestes a começar, com a mediatização das mortes de Joana, no Algarve e de Catarina, em Ermesinde, tem-se equacionado o papel que as Comissões de Protecção da Crianças e Jovens devem ter na identificação, avaliação, acompanhamento e decisão de casos em que as famílias naturais não cumprem os deveres a que estão obrigadas.
A magistrada Dulce Rocha é a presidente da Comissão Nacional de Protecção das Crianças e Jovens em Risco. Em entrevista ao Solidariedade sublinha que a mediatização tem, pelo menos, um aspecto positivo: o de promover a denúncia de situação de crianças em perigo.
Nesta entrevista Dulce Rocha afirma que o Ministério Público deve assumir cabalmente as funções de fiscalização e acompanhamento, que lhe estão atribuídas por lei, junto das Comissões locais.
Solidariedade - Nunca como agora se ouviu falar tanto de crianças em risco. O processo Casa Pia e os casos da Joana, no Algarve, e o da Catarina, em Ermesinde, puseram em evidência algum mau funcionamento das Comissões de Protecção de Crianças e Jovens. O que é que pode e deve ser alterado em função desta mediatização?
Dulce Rocha - Pode haver consequências, umas positivas e outras não tão positivas. A mediatização que tem ocorrido traz vantagens e desvantagens. Todos os cidadãos têm uma responsabilização ética de denúncia dos casos. O grande público sente que tem o dever de participar casos, de que tenham conhecimento, para evitar que crianças fiquem numa situação de perigo. A mediatização tem provocado a ocorrência de mais denúncias. Há um aumento de processos de promoção e protecção, tanto nas comissões como nos próprios tribunais e mesmo no recurso às linhas de emergência. Há também um lado negativo que nós deveríamos minimizar, procurando influenciar no sentido dos media não utilizarem estes temas de uma forma exibicionista, mas apenas procurando o lado informativo. A exibição pode ter uma influência de repetição ou reprodução da violência na sociedade.
Solidariedade - Uma das consequências destes casos mediáticos é a inquietação que se verifica a propósito do funcionamento das Comissões de Protecção de Crianças e Jovens por esse país fora. Parece evidente que nos casos presentes houve falhas graves.
Dulce Rocha - Temos que analisar caso a caso para vermos o que é que se passou. Sabemos que houve situações semelhantes nos tribunais. Não é generalizável. Pode haver uma má apreciação por deficiente informação ou alguma dificuldade em diagnosticar o caso na sua extensão. Se as pessoas não tiverem experiência de vida e formação podem ter maior dificuldade em aperceberem-se da gravidade de um caso. O que me parece ser uma conclusão é que as palavras de quem abandona ou de quem maltrata têm de ser obrigatoriamente testadas pela sua prática. Se, por exemplo, temos perante nós uma mãe que já abandonou dois filhos antes temos que ter maior cuidado do que se tivermos uma jovem que nunca abandonou ninguém. Diz-se agora que a mãe da Joana não vivia com alguns dos seus filhos de anteriores ligações... Se essa informação tivesse sido levada à Comissão provavelmente teria havido mais informação sobre os factores de risco e a decisão podia ter sido outra. Além dos factores de risco que existiam - a pobreza, alguma desorganização a nível familiar - a Comissão não teve factores de risco suficientes para chegar à conclusão de que se tratava de uma situação de perigo, que devia ser acompanhada. No caso de Catarina, a bebé de Ermesinde, havia ali um alerta. Uma instituição de acolhimento opunha-se à entrega. Devia ter havido maior cautela. Ou não se entregava a criança aos pais ou então acompanhava-se semanalmente. São ensinamento que devemos retirar destas mortes trágicas.
Solidariedade - Não seria desejável que as comissões em vez de esperarem pela informação, sobre os casos de crianças e jovens em risco, a procurassem?
Dulce Rocha - Eu acho isso possível. Nós ainda temos uma comunidade que participa pouco, apesar de terem aumentado as denúncias. Temos a noção de que tem que haver uma maior atenção a todos os sinais de risco para uma decisão adequada. O erro não é só das comissões, os tribunais também nos dão exemplos de decisões profundamente contrárias aos direitos das crianças. Há uma cultura prevalecente de nos basearmos nas palavras. Aquilo que as pessoas dizem pode não corresponder aos seus sentimentos.
Solidariedade - Tem ideia de que os tribunais decidem muitas vezes mal quando julgam casos relacionados com os menores e com a família?
Dulce Rocha - Tenho essa ideia, até porque trabalhei muito tempo nos tribunais. Toda a minha vida se tem desenrolado nos tribunais. Desde 1981 a 1991 foi no tribunal criminal, desde 1991 que é nos tribunais de família e menores. Tenha a noção nítida de que é necessário um esforço de todos e considero que devia haver uma especialização dos magistrados na área dos direitos da criança. Todos deviam conhecer muito bem a Convenção dos Direitos da Criança, que vai fazer 15 anos; todos deviam conhecer alguma coisa de psicologia, para além do que são muitas vezes obrigados a saber. A criança é um sujeito de direito e é titular de direitos. Um deles é o direito às suas ligações afectivas profundas. Se não as tiver tem direito a uma família. Nós temos uma lei de protecção de crianças e jovens em perigo que fala em vários princípios, um dos quais é o da prevalência da família, onde já entra a família adoptiva. Se a família natural não está em condições de exercer as suas funções, estabelecendo uma relação afectiva de qualidade, o Estado tem o direito e o dever de arranjar outra família para a criança. E o princípio deve ser interpretado da seguinte forma: é sempre melhor uma família do que uma Instituição.
Solidariedade - Temos ouvido o novo ministro, da Segurança Social da Criança e da Família, a defender o regresso do Ministério Público às comissões de protecção. Qual é a sua opinião?
Dulce Rocha - Ainda não tive oportunidade de falar profundamente com o sr. ministro sobre essa matéria. Penso que, de acordo com este modelo que está definido, o Ministério Público tem funções importantes. São funções de fiscalização e acompanhamento. Agora, o certo é que devia haver magistrados do MP interlocutores das comissões e há algumas que não têm magistrado do MP interlocutor nomeado. Por outro lado, há magistrados nomeados que vão pouco às comissões. Se o MP assumir o papel que já tem, nas suas comarcas, junto das 245 comissões que existem, este sistema pode funcionar assim. Podemos pensar em estruturas intermédias em que o MP também fizesse parte...
Solidariedade - Uma comissão concelhia tem um representante do município, um representante da segurança social, um representante da educação, um representante da saúde e depois pode ter outros membros: pessoas especializadas em direito, psicologia, representantes de IPSS, associações de pais... O MP acompanha e fiscaliza. Esta estrutura não dificulta o funcionamento e a tomada de decisão? Não há alguma confusão na intervenção?
Dulce Rocha - Nós deveríamos pensar na natureza das acções ou das omissões que provocam intervenção em vez do consentimento. Isto é... Actualmente, as comissões de Protecção actuam em todas as situações que forem consideradas de perigo. A lei nomeia perigo para a segurança, saúde, educação e bem-estar da criança. São consideradas situações de perigo todas as situações desde os maus tratos, abusos sexuais, abandonos até à omissão de cuidados em que a criança vive entregue a si própria ou consome drogas, álcool, crianças que não frequentam a escola... é muito abrangente. As comissões estão muito vocacionadas para a prevenção e para a promoção da integração da criança na família. Pensou--se que podia haver um funcionamento solidário entre as diversas entidades, envolvendo a comunidade local, todavia a vocação primeira destas comissões deve ser o apoio às famílias. Nas situação em que a acção pode ser feita com a família, no sentido de estimular as suas competências, intervindo no seio familiar preventivamente. Quando há um crime, quando uma criança está no hospital com um traumatismo craniano ou com fortes indícios de maus tratos, se a suspeita recai sobre quem exerce o poder paternal, creio que estamos perante um caso que, das duas uma: ou merece um procedimento judicial a sério - e então eu pergunto porque é que o hospital não pode comunicar directamente ao tribunal, para que o MP possa intervir imediatamente pedindo uma retirada da criança, logo no próprio dia, sendo escusado passar pela comissão -, ou então o que se passa é que a situação pode não ser assim tão evidente e apenas subsistem suspeitas e mais suspeitas, estamos a averiguar e vai-se perguntar ao agressor se presta o seu consentimento para a intervenção. O que me parece um contra-senso. Porque nestes casos o consentimento é indiferente. Consinta ou não consinta tem que haver uma entidade a intervir e a única entidade que pode intervir independentemente do consentimento é o tribunal. Penso que não deve ser apenas o consentimento a determinar qual é a entidade que vai intervir mas o que deve determinar é a natureza da acção. Se houve já crime, se houve já violação dos direitos fundamentais da criança há uma violação dos deveres fundamentais dos pais e o mais natural é que haja perigo de repetição do crime, então neste caso a medida que é correcta, muitas vezes, é a retirada da criança e isso tem que ser decidido pelo tribunal.
Solidariedade - Parece, de facto, haver alguma indefinição, confusão e até hesitação no funcionamento das comissões e alguma crítica em relação ao papel do M. Público...
Dulce Rocha - O MP tem uma função fiscalizadora e se o fizesse bem o sistema funcionava. É uma obrigação que tem que ser assumida. Agora, definir outras competências para o MP é uma decisão política e eu não tenho nada a ver com isso. Esta lei tem muitas vantagens, mas podia ter definido melhor as atribuições das comissões, da presidência... deveríamos rever. No último encontro de avaliação em Oeiras, o sr. ministro pediu contribuições para que se repensasse a intervenção do MP. Penso que com a existência das 245 comissões já não será possível regressar ao modelo de 1991.
Solidariedade - Com este novo ministério há um reforço das preocupações com a problemática das crianças e da família?
Dulce Rocha - Penso que houve um avanço ideológico e conceptual ao considerar que este cidadãozinho, chamado criança, é falado ao mais alto nível na estrutura do governo. Este ano é o 15.º aniversário da Convenção sobre os direitos da criança e essa foi uma forma de o comemorar. A Assembleia da República vai dedicar o dia 10 de Dezembro, o dia mundial dos direitos humanos, aos problemas da criança.
Solidariedade - Está prestes a começar o julgamento do caso da casa Pia. O que vier acontecer nesse julgamento vai ter alguma influência na forma como serão tratados no futuro os problemas relacionados com a infância?
Dulce Rocha - Penso que só o facto de se saber que aquelas crianças foram abusadas continuadamente - e que houve gerações de crianças que foram vítimas de abuso sexual numa instituição do Estado -, só o facto de se saber que isso aconteceu deve determinar a alteração de vários procedimentos. No Processo Penal a questão da protecção de testemunhas: as crianças devem sempre ser ouvidas em videoconferência e deverá haver tomada de declarações para memória futura, evitando a tripla vitimização; a questão da prescrição deste tipo de crimes sexuais, que deve ser alargado...
Solidariedade - Parece evidente ter havido crimes... E se não houver condenações no caso Casa Pia?
Dulce Rocha - Penso que será uma derrota para a nossa democracia. São crianças que foram entregues a uma instituição do Estado porque não tinham família, porque estavam em risco e em vez de serem protegidas foram vitimizadas. É inadmissível e revoltante. A investigação foi feita por uma equipa competente e quer-me parecer que o processo tem que dar resultados. Uma coisa que eu sei: os adultos mentem muito mais e muito melhor do que as crianças.
Solidariedade - Do que sabe, do que estuda e do que conhece da sociedade portuguesa considera que hoje em dia se tratam melhor as crianças e jovens?
Dulce Rocha - Sim, sem dúvida. Há uma evolução em toda a Europa e nos EUA. Há uma preocupação maior com as crianças, somos mais intolerantes relativamente aos maus tratos e a práticas culturais de educação de duvidosa eficácia. As palmatórias e as "reguadas" acabaram, os pais já não batem em público nos filhos. Estamos melhor, mas temos que ter cada vez mais consciência de que, sobretudo numa população envelhecida como a nossa, as crianças são um bem precioso.
Dulce Rocha é magistrada há mais de 20 anos, tendo desempenhado durante mais de uma década funções no Tribunal de Família e Menores de Lisboa. Foi coordenadora, por três anos, da Comissão Nacional dos Direitos da Criança; foi membro do Conselho Superior do Ministério Público. Actualmente é presidente da Comissão Nacional de Protecção das Crianças e Jovens em Risco.
Data de introdução: 2004-11-18