1 - Quando comecei a advogar, há 40 anos, era impensável qualquer advogado, ou qualquer magistrado, falar à imprensa sobre os processos judiciais em que estivesse envolvido: era bom para a justa composição dos litígios que a discussão deles fosse discreta, dentro da sala do tribunal e não perante os holofotes da publicidade e à medida da voracidade das multidões.
Tratava-se de uma regra que era seguida à risca.
O único desvio a essa regra de que me lembro eram as reportagens do Jornal de Notícias sobre os julgamentos no Tribunal de Polícia, onde se julgavam sumariamente os pequenos delitos cometidos de véspera.
Mas eram relatos de audiências públicas, não era a devassa dos autos.
Ainda mais do que os tribunais, as casas onde as famílias moravam eram um lugar sagrado, de discrição e de recato, onde a vida decorria, como deve ser, fora do escrutínio público.
Hoje é ao contrário: os media tomaram conta da nossa vida e, em vez da mediação entre os factos e o público, como lhes compete, são os jornais, as televisões e as rádios que constroem os factos, que constituem por si a realidade que nos é dada a conhecer, de chofre.
Quando um programa de televisão tem como finalidade expor-nos de forma contínua e em tempo real, de dia e de noite, em modo de reportagem, toda a vida que decorre dentro de uma casa, onde pessoas fazem de conta que moram – e tal programa é, há anos, um sucesso de audiências -, percebemos melhor o mundo em que vivemos.
Não faltará o dia em que, vulgarizado assim o valor do recato e da intimidade das pessoas e das famílias, as turbas exijam uma câmara de televisão ou de vídeo dentro da casa de cada um de nós, para fiscalizar o modo como vivemos, se cuidamos bem dos filhos ou se praticamos violência doméstica.
(Há sempre pretextos “virtuosos” para o retrocesso!)
Pois se as cabeças se vão formatando para exigir tudo a nu, tudo à vista, quem resistirá à vontade da plebe, isto é, dos eleitores?
(A este propósito, de verdadeira distinção entre a civilização e a barbárie, não posso deixar de anotar a justa indignação do Presidente Jorge Sampaio, talvez o mais civilizado dos Presidentes que conheci, quanto à proposta de lei para divulgar pelas comunidades a lista dos pedófilos residentes na área, qualificando-a de regresso à justiça de pelourinho, isto é, de exposição ao voyerismo malsão das multidões.)
2 – A detenção e prisão preventiva de José Sócrates e o espectáculo mediático que enquadrou esses momentos de um processo judicial em fase de inquérito, sob segredo de justiça, foram um exemplo claro destes novos tempos.
É claro que a notícia da detenção ou da prisão de um ex-Primeiro-Ministro constitui, em qualquer país democrático e em qualquer sociedade aberta, notícia de primeira página.
São igualmente relevantes as razões da prisão, ou as acusações de que é indiciado – que os portugueses têm o direito de conhecer.
Mas, pelo que me diz respeito, prefiro saber dessas razões, e das situações concretas que lhes terão dado causa, através de investigação jornalística competente e imparcial, como sucedeu noutras ocasiões, ou em audiência de julgamento, em vez de as conhecer sopradas do interior do processo, numa altura em que não há ainda acusação.
Por outro lado, assistir, durante horas, a reportagens em vários canais de televisão, mostrando-nos sempre o mesmo portão fechado (nas instalações creio que do DCIAP), com vários jornalistas e correspondentes operadores de imagem, de microfone na mão, à espera que o portão subisse e dele saíssem não se sabe que viaturas, com o afã de captar, mesmo que de raspão, a face de José Sócrates a caminho da prisão, para a exposição pública desse momento – e com outros jornalistas e câmaras, em Évora, à porta da prisão, à espera do ingresso, e outros tantos à porta da Penitenciária, por via das dúvidas, não fosse ter-se enganado a fonte -, causou-me a mim, que tanto e tão justamente critiquei José Sócrates nestas páginas, uma incomodidade moral.
O mesmo se diga da presença de jornalistas, prevenidos, como não pode deixar de ser, por informação vinda do processo, à saída de Sócrates do avião, no aeroporto, para assistir e transmitir em directo – como o povo gosta – a detenção do ex-Primeiro Ministro.
Também não percebo o interesse jornalístico em saber o que José Sócrates lê e o que come na prisão – embora já considere de interesse público a ementa do almoço com Pinto Monteiro, ex-Procurador Geral da República por si indicado, nas vésperas da detenção.
3 – O facto de, nos tempos mais recentes, tantas investigações judiciais terem conduzido a medidas de coacção tão graves, e incidindo em personalidades públicas relevantes, tem constituído uma surpresa.
Não estávamos habituados a que, em tratando-se de poderosos – Armando Vara, José Penedos, Ricardo Salgado, Duarte Lima, Director do SEF, Director-Geral dos Registos e Notariado, José Sócrates … -, lhes sucedesse o mesmo que aos outros.
Foi-se até dizendo que haveria uma justiça para ricos e poderosos; e outra para pobres.
Não é bem assim… O que há é crimes de ricos e poderosos e crimes de pobres – e aqueles têm parecido mais difíceis de investigar ou de provar.
Os pobres e os excluídos não vendem vistos Gold, não têm contas em off-shores para lavar ou ocultar dinheiro mal ganho, não negoceiam terrenos de milhões de euros, não fazem negócios com o Estado, ou à custa do Estado, não cobram “luvas” nem ecebem “prendas” …
Muitos vão dizendo que tal aumento de eficácia se deve às mudanças no Ministério Público, a começar pela nova Procuradora-Geral da República, Joana Marques Vidal, que veio substituir Pinto Monteiro, o do almoço com José Sócrates.
Alguma influência terá tido … mas a minha explicação vai por outra via.
Concordo com Raquel Varela: em tempos de crise económica funda, como a que vivemos, sempre assim sucede.
O dinheiro é escasso, e não chega para todos os ladrões de colarinho branco da mesma forma que chegava antes.
Para retomar o equilíbrio, fazem como os peixes: comem-se uns aos outros.
Como com Aquiles, o que é preciso é saber que é no calcanhar que se deve desferir o ataque.
Há sempre alguém que sabe …
Henrique Rodrigues – Presidente do Centro Social de Ermesinde
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