1 - O escritório familiar de advocacia onde comecei a trabalhar, há cerca de 40 anos, tinha como referência um vulto da advocacia do Porto na segunda metade do século XX: fora candidato pela Oposição Democrática às eleições legislativas de 1957; integrara o pequeno grupo inicial dos sete democratas independentes do Porto que, na sequência da sugestão de António Sérgio, teve a iniciativa de convidar Humberto Delgado para ser candidato a Presidente da República, em 1958, contra o regime de Salazar; e foi ainda candidato a deputado, pela CEUD, nas eleições para a Assembleia Nacional, em 1969, no início da ”primavera” marcelista.
(E era um grande advogado …)
Tendo, antes do 25 de Abril, passado pelas comissões pró-associação dos liceus do Porto, em 1968/1969, tendo militado, em Coimbra, mais tarde, e também no Porto, nos intervalos ou nas faltas às aulas, nas lutas estudantis de oposição ao regime; e tendo, poucos meses antes do 25 de Abril, casado com uma familiar do Dr. Manuel Coelho dos Santos, foi naturalmente com gosto que fui parar ao seu escritório quando comecei a trabalhar como advogado.
Ao longo destas quase quatro décadas, habituei-me a ver passar pelo escritório muitas dessas figuras que associamos à luta contra o “Estado Novo”: de Emídio Guerreiro a Vitorino Magalhães Godinho, de José Augusto Seabra a Mário Cal Brandão, de Salgado Zenha a Artur Andrade, de Artur Santos Silva (Pai) a Olívio França, de Alfredo Ribeiro dos Santos a Mena Matos, de Almeida Santos a Xencora Camotim.
Tive alguma experiência das manifestações do 1º de Maio e do 31 de Janeiro, no Porto, e do boicote à Queima das Fitas e ao Festival de Coros, que eram conotados com a Situação, nos anos imediatamente anteriores ao 25 de Abril.
Mas as memórias mais antigas da celebração do 31 de Janeiro e do 5 de Outubro, nesta cidade do Porto, durante os anos escuros do salazarismo, ouvi-as ao ritmo do desfiar das lembranças desses velhos oposicionistas, nas conversas com que entretínhamos o fim de tarde, no escritório.
E a vontade que aí exprimiam, sempre replicada nas romagens ao cemitério por ocasião do 31 de Janeiro, já após a Revolução de Abril, era a de transmitir às jovens gerações essa luz que os iluminava por dentro, a luz da liberdade.
Já então essas comemorações rituais eram mais o lugar de figuras graves e grisalhas do que de gente nova.
2 – Essa vontade de transmitir aos novos o fogo sagrado, sejamos francos, nunca teve grande sucesso.
A mim, como creio que a todos os jovens que então tinham a minha idade, sempre me pareceram coisa distante e alheia, essas datas que marcaram, do ponto de vista simbólico, os tradicionais festejos republicanos do Porto: o 5 de Outubro celebrava a implantação da República, que foi em 1910 – há mais de 100 anos; e o 31 de Janeiro é ainda mais antigo: 1891, em reacção contra o Ultimato inglês, de 1890.
Aos olhos de um jovem, como eu era em meados da década de 70 do século passado, o que haviam de parecer essas datas, todavia decerto veneráveis, da nossa história recente, senão uma arqueologia?
Mesmo as figuras da velha Oposição republicana do Porto, que acima referi, não eram contemporâneas delas, mas muito posteriores.
Tinham, no entanto, recebido o legado cívico da exaltação republicana de outros e anteriores honrados cidadãos do Porto, de “bons cidadãos do lugar”, como Mem Verdial, Eduardo Santos Silva, Veloso de Pinho, José Régio …
E tinham a luta contra a ditadura a motivá-los.
3 - O Dr. Manuel Coelho dos Santos faleceu há cerca de 3 anos. E passei a ser eu o advogado mais velho do escritório.
Este ano, no dia 25 de Abril, lá fui, de cravo ao peito, desde o Largo Soares dos Reis, onde era a sede da PIDE – e onde, mesmo antes do 25 de Abril, se homenageavam os vencidos do 31 de Janeiro, cujo memorial se encontra no Cemitério do Prado do Repouso, vizinho da ex-PIDE -, até à Avenida dos Aliados, na Baixa da cidade.
E dei comigo a pensar que se passa hoje o que se passava há 30 anos: quem seguia na manifestação eram velhos como eu; e jovens, só as escassas dúzias arregimentadas por fidelidades partidárias.
Quem tenha menos de 55 anos, não tem senão uma vaga ideia do que era o País antes de Abril.
Não sabe, desse saber de experiência feita, o que era querer votar e não poder fazê-lo; falar livremente sem ter que olhar para o lado, a ver quem estava a ouvir; reunir com amigos e poder ser preso …
Não sente, à própria flor da pele, a diferença entre dois mundos …
É por essa razão que grande parte dos jovens eleitores não vai sequer votar.
Tudo é dado como garantido: a liberdade, a segurança, os direitos, não é preciso lutar por eles.
Que sentido faz alertar para os perigos que sempre nos espreitam essas certezas, se quem queremos alertar não os sente como ameaças?
Por mim falo: que tento sem sucesso converter às virtudes do sistema que nos rege, por contraponto àquele em que vivi 20 anos, a gente nova que conheço.
Tudo se repete, tudo é sempre igual.
Menos nós, a quem a Primavera não reverdece.
E que nos reunimos, como as folhas no Outono, a celebrar Abril – numa espécie de antecipação.
Como escreveu Fernando Echevarría:
“Os mortos aconchegam-se, no outono,
aonde, sendo mais secas,
as folhas juntam o pródigo tesouro
da tristeza.”
Henrique Rodrigues – Presidente do Centro Social de Ermesinde
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