1 - Escrevo esta crónica no Dia de Todos os Santos, que calhou, este ano, ser Domingo.
Este Dia, em que mais comovidamente recordamos a memória dos nossos mortos, vai voltar a ser feriado nacional, a partir do próximo ano, seja qual for a solução de Governo que nos aguarda.
Da coligação, própria ou imprópria, entre o PS, o Bloco de Esquerda e o PCP, já veio a mensagem da próxima restauração dos feriados civis eliminados há dois anos pelo anterior Governo – o 5 de Outubro e o 1º de Dezembro -, bem como o anúncio da negociação com a Santa Sé, nos termos da Concordata, do regresso do Dia de Todos os Santos e do Dia do Corpo de Deus ao elenco dos dias festivos comemorados pela comunidade nacional.
Mas também da coligação que hoje nos governa – PSD/CDS -, sabemos, pela voz de Paulo Portas, que tenciona antecipar para 2016 a restituição desses feriados eliminados durante o período de “ajustamento”, por imposição da “troika” internacional dos credores, que nos tutelou durante a última legislatura.
Quer desta vez, quer no ano passado, que coincidiu com o sábado, ninguém praticamente se deu conta de que o feriado deixara de o ser: o ser dia de fim-de-semana permitiu que todos rumássemos às nossas terras de origem, regressando aos manes, em romagem de saudade aos cemitérios e em peregrinação silenciosa para dentro de nós próprios.
Como sucedera sempre, dos tempos de que guardo memória.
Não quero crer que o anterior Governo ignorasse que a eliminação dos feriados, que promoveu em 2012, viesse a redundar nesta inutilidade e irrelevância prática, em termos de equilíbrio das contas públicas.
Foi, aliás, na ocasião, advertido por muitos, dentro da própria área política do Governo – salientando-se nesse aspecto o Dr. Ribeiro e Castro, então deputado da maioria – que os danos simbólicos provocados na coesão nacional pela eliminação dos feriados não teriam qualquer contrapartida do ponto de vista da eficácia da máquina produtiva.
Deve concluir-se, portanto, que essa medida de diminuição do número de feriados se deveu mais a uma intenção de punir quem vivera acima das suas possibilidades, do que propriamente ao objectivo de um módico de aumento de produtividade.
Tratou-se apenas de um símbolo: a marca do castigo.
Essa medida não veio sozinha; fez parte de um pacote visando a desqualificação do factor do trabalho, onde também estavam a desvalorização da contratação colectiva, o corte de salários e a precarização das relações laborais.
2 – O Primeiro-Ministro, Pedro Passos Coelho, durante a campanha eleitoral, ao justificar as medidas mais lesivas que tomou durante o período de vigência do Memorando com a troika, referiu por várias vezes que nenhum Governo, quando toma medidas restritivas dos direitos dos cidadãos, o faz por gosto – mas sim por a tanto ser obrigado: pelas circunstâncias, pelos credores, pelo que for …
Passado o período crítico, e tendo as medidas restritivas logrado sucesso, segundo essa narrativa, seria altura de distender a pressão sobre os portugueses, aliviando a carga fiscal, diminuindo os cortes em salários e pensões, fazendo regressar ao tempo pretérito as regras da contratação colectiva, aumentando o salário mínimo, estimulando o consumo…
Tal seria possível por as medidas difíceis, tendo no entanto sido necessárias, terem produzido os seus efeitos benéficos na economia – e, portanto, na vida das pessoas.
A restauração dos feriados eliminados em 2012 faria parte desse regresso ao passado, apenas tornado possível pelos sacrifícios do presente.
Não é esse o discurso das Oposições, em aparente trânsito para um próximo Governo.
Com efeito, o que a nova coligação PS/BE/PCP apresenta como programa comum – ao que é lícito concluir de algumas declarações avulsas de vários dirigentes – gira à volta das mesmas medidas que o Governo se propõe aliviar:
A nova coligação pretende aumentar o salário mínimo, em negociações na Concertação Social; o Governo não pretende outra coisa, e na mesma instância.
O PS, o BE e o PCP prometem descongelar as pensões, acabar com os cortes delas e aumentar as pensões mínimas.
O Governo não assegura coisa diversa, embora a ritmo porventura mais lento – sendo certo que as pensões mínimas não estiveram congeladas durante o “ajustamento”.
Quanto à eliminação da sobretaxa do IRS, também a diferença está no ritmo: as Oposições garantem fazê-lo em dois anos, o Governo mais devagar (muito mais devagar, dadas as recentes “surpresas” na cobrança fiscal).
O mesmo se diga quanto ao fim dos cortes salariais na função pública – que as Oposições, em sendo Governo, concretizarão de seguida, ao passo que o Governo o fará mais compassado.
3 – Em suma, ninguém diz concordar com as medidas restritivas levadas a cabo durante o período do “ajustamento”: nem quem as tomou; nem quem então as contestou.
E todos prometem voltar, mais depressa ou mais devagar, a esse tempo primordial, em que vivíamos sem tutela externa.
A principal diferença está na perspectiva: para o Governo – de então e de hoje – o período de “ajustamento” seria uma espécie de purgatório, um viático por onde teríamos de passar a fim de remir os pecados do passado, em que vivíamos acima das nossas possibilidades, a fim de aceder a um outro mundo, bem diferente do anterior, onde jorram o leite e o mel … - embora certamente que muito mais para uns poucos do que para quase todos; para as Oposições, esse tempo foi de inferno, um caminho de pobreza e sem regresso, de onde só se sai mudando de fé.
Deixando de acreditar que o inferno existe e prometendo o paraíso cá na terra (tese aliás próxima da explicação que tem do mundo boa parte da esquerda parlamentar, em vias de coligação futura).
Nos próximos tempos são essas duas explicações sobre o passado recente que se vão defrontar no debate público – seja qual for a solução de governo que venha a ser consagrada.
Uma, que transige com a “austeridade” a que estivemos submetidos, lida como condição para o sucesso.
Esta versão só é compatível com um cenário de efectiva melhoria das condições de vida dos portugueses em geral e da evolução favorável dos indicadores económicos e sociais.
Essa explicação, a do Governo, não pode conviver com a suspeita de que os resultados da evolução da economia, que foram apresentados ao longo dos últimos meses e que estiveram na base da vitória eleitoral da coligação PSD/CDS, não correspondem à realidade.
(“Surpresas” como a da sobretaxa do IRS, que ia ser devolvida e agora já não vai, ou vai em muito menor escala, não poderão repetir-se sem demérito geral desta versão.)
Outra, que em boa parte recusou a austeridade – e se recusou a reunir sequer com a troika – e que faz desse confronto e rejeição da receita a base da sua proposta política.
(O PS, que chamou a troika e agora a renega, faz mais lembrar o poema “Quadrilha”, de Carlos Drummond de Andrade: “João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento, Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia, Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes, que não tinha entrado na história.”
Qual tese vai vencer?
Para o ano saberemos …
Henrique Rodrigues – Presidente da Direcção do Centro Social de Ermesinde
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