HENRIQUE RODRIGUES

O voto e o veto

1 - A penúltima destas crónicas, a que dei o título, que me pareceu muito apropriado, de “A Reversão” – depois declinado por vários comentadores da praça -, discorria sobre a orientação que tem marcado as decisões e medidas tomadas pelo actual Governo, nestes seus dias iniciais, afirmando explicitamente marcar o contraponto relativamente às que vinham da anterior maioria política, operando a sua reversão.

Nesse “virar a página”, lá calhou a vez, na agenda do Parlamento, da aprovação da proposta de lei sobre a adopção de crianças por casais homossexuais. Este debate integra-se na agenda dos temas chamados fracturantes, em regra trazidos pelo Bloco de Esquerda para o debate público, e que o PS, guardião apesar de tudo menos empenhado nessa agenda, tem de subscrever, em homenagem à estabilidade da actual coligação.

Faz parte do preço.

É certo que, além do Bloco, também o Partido Comunista veio ao debate, do lado da “virtude”, no sentido da aprovação da proposta de lei.

Mas a conversão do Partido Comunista a estes temas mais “modernos” é muito recente e pouco convencida – é mais táctica do que de fundo.

Nos labirintos do Partido, ainda permanecem os ecos da velha moral bolchevique, pouco sensível às questões próprias dos direitos das minorias sexuais e distante das inovações sociológicas e antropológicas que tornam para alguns urgente e necessário este debate.

(Não assim, todavia, no que respeita a um outro tema agora também objecto de reversão, o do aborto.

Nessa matéria, a compreensão do Partido Comunista por este fenómeno sempre foi clara, fundada e linear – bastando lembrar que a problemática do aborto e da condição das mulheres que a ele recorrem constituiu o tema da tese de licenciatura de Álvaro Cunhal, então preso, perante a Faculdade de Direito de Lisboa.)

 

2 – O Presidente da República vetou a proposta de lei sobre a adopção por casais homossexuais, invocando, no essencial, dois argumentos:

Não houve o debate nacional que uma tão profunda alteração da matriz do instituto exigiria; e a decisão tomada pelo Parlamento é apenas tributária da luta pelos direitos civis da comunidade LGBT - e já não dos direitos das crianças a adoptar.

Sei bem que os últimos tempos não correram de feição para Cavaco Silva, no exercício da função presidencial, criticado, em momentos diferenciados, por todos os quadrantes do espectro político.

Mas penso que está com a razão nos argumentos que fundamentam o seu veto.

Quanto à falta de debate capaz sobre o tema, faltou desta vez a voz senadora de Manuel Alegre, que, em anterior debate sobre o mesmo assunto, numa legislatura pretérita, advertira para a escassa importância relativa do tema, tendo em conta as prioridades do País, e para a necessidade de um debate profundo sobre ele.

Mas debate, na verdade, faltou: os deputados da nova maioria legislaram à pressa, na onda da página virada, misturando este tema divisor com a mais pacífica restituição do estatuto de trabalhadores do Estado e reformados e pensionistas, sem cuidar de buscar na cidadania o amparo para uma mudança assim radical em matéria tão sensível.

E quanto ao segundo argumento de Cavaco Silva, não é sequer disfarçado pelos promotores da alteração legislativa que do que se trata é de matéria de direitos humanos da comunidade LGBT, objecto de discriminação relativamente a outras formas de organização familiar, para além da união heterossexual que constitui o modelo dominante.

Nada a obstar ao reconhecimento pleno do estatuto de igualdade, em termos de direitos civis, a todos os cidadãos.

Mas, como bem adverte Cavaco Silva – e, já agora, no mesmo sentido, o seu particular adversário, Miguel de Sousa Tavares, no último Expresso -, existindo um direito, inscrito no estatuto jurídico de uma criança sem progenitores, ou com estes incapazes, a ver instituído pelo Estado um mecanismo de promoção ou protecção, que pode ser a integração numa família, como filho, através da adopção, não existe seguramente um direito dessa criança a ser especificamente adoptada por um casal homossexual.

Alegar, assim, o superior interesse da criança como fundamento da medida agora aprovada constitui uma verdadeira mistificação intelectual e um tributo à mais pura demagogia – na medida em que não é o direito dessa criança que constitui a causa eficiente da inovação legislativa.

Essa causa eficiente é apenas a da tutela dos direitos dos elementos da comunidade LGBT.

Ora, o que se deve fazer às mistificações é desmistificá-las.

 

3 – Não vale a pena, em nome do discurso politicamente correcto que está na base da decisão parlamentar, deixar de chamar à conversa uma conclusão que se me afigura clara: encontramo-nos numa situação de eventual ou potencial conflito de direitos, ambos de dignidade constitucional, entre o direito de uma criança a crescer e ser criada no seio de uma família e o direito à igualdade de tratamento por parte de um casal homossexual.

Em caso de conflito de direitos, ou pode haver composição entre eles, com compressão de ambos; ou deve prevalecer o mais relevante, na ponderação relativa.

Dir-se-á que pode haver, em concreto, composição.

Mas sem debate?!

E não é verdade que o direito à adopção só existe na forma passiva: o direito a ser adoptado; não existe, nem tem dignidade constitucional, como modalidade activa: não existe um direito a adoptar?

Na verdade, a opção do legislador por aquele último direito, desvalorizando o primeiro, configura, materialmente, de certa forma, uma coisificação da pessoa, convertida em instrumento da realização de direitos de outros.

Constituindo, como diriam os latinos, um “ius in personam”, um direito sobre a própria pessoa, assim tornada coisa, ela própria objecto de direitos de terceiros.

Era esse o estatuto dos escravos: eram coisas, propriedade do seu dono, este com direito de vida e de morte sobre eles, que podiam ser comprados e vendidos e deixados como herança.

A civilização em que vivemos aboliu essas indignidades (embora ainda hoje, a propósito de tanta informação que nos chega do Médio Oriente, sejamos confrontados com notícias que dão conta da subsistência de escravatura em alguns territórios).

Exagero na comparação das crianças com os escravos?

Certamente: mas menor do que o registo intolerante e sectário com que os defensores da medida exautoraram a discordância.

 

Henrique Rodrigues – Presidente da Direcção do Centro Social de Ermesinde

 

Data de introdução: 2016-02-07



















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