Não deixa de ser curioso que a macroeconomia, uma ciência que foi inventada há menos de um século, já tenha criado uma certa dogmática a qual, também curiosamente, afecta mais o vulgo que propriamente os seus “cientistas”.
Por exemplo, actualmente todos falamos - economistas, jornalistas, curiosos e público em geral – com a maior naturalidade, do Produto Interno Bruto.
Que mal tem isso? Nenhum, pelo contrário. O problema é que por vezes se fala do PIB como se fosse algo de muito objectivo, muito preciso, como o peso de um saco de batatas ou a temperatura do ar.
Na verdade, aquilo a que chamamos PIB é apenas uma mera estimativa, obtida por métodos estatísticos e com elevado grau de incerteza.
Que o grau de incerteza é elevado confirmam-no as revisões constantes a que o PIB está sujeito.
Há poucos dias, o departamento de estatísticas oficiais Japonesas, que tinha anunciado há um par de semanas uma recessão no terceiro trimestre deste ano, corrigiu a estimativa para uma expansão a uma taxa anualizada de 1%. Não morram de espanto se, um dia destes, uma nova revisão atirar a economia de novo para recessão.
Já governos caíram porque se pensava que a economia estava em recessão quando estava, de facto, a expandir-se, como oposições já perderam eleições porque se pensava que a economia estava em bom estado, favorecendo a imagem do governo incumbente, quando, de facto, estava, em contracção.
Mas as fragilidades do PIB, para além das inconsistências da medição, podem ser encontradas a um nível mais profundo.
Se eu tiver um acidente com o meu carro não é provável que a sociedade fique necessariamente melhor. Contudo, o PIB aumenta face ao cenário de não acidente – o valor da reparação acresce ao volume de “riqueza” criada.
Admito que o meu divórcio tenha deixado a sociedade mais ou menos na mesma, contudo, o PIB aumentou porque o meu advogado me extorquiu uma soma considerável.
Acaso ocorra a mais bela experiência espiritual ou a mais intensa relação afectiva da minha vida, o PIB continuará quieto como uma pedra.
De alguma forma podemos defender que o PIB sempre servirá para alguma coisa. Tudo o resto igual, com um PIB um pouco maior, devemos ficar um pouco melhor, digamos um pouco mais felizes colectivamente. Mas não é necessariamente assim, como podemos ver numa experiência ao nível individual. Se eu comer uma francesinha - que até me apetecia - devo ficar melhor pelo menos relativamente ao estado de “não comer”. No entanto, nada garante que não sobrevenha um sentimento de culpa – lá se vai o colesterol, as minhas análises vão ficar terríveis, o meu médico vai moer-me o juízo, etc.
Ou seja, nada garante que ter mais coisas (apenas) nos faça necessariamente mais felizes.
Por isso começamos, economistas e não só, a falar cada vez mais da Felicidade Interna Bruta (FIB), como alternativa ao PIB.
Diria que há dois níveis de profundidade na abertura a este tema da FIB.
Um primeiro nível consiste em utilizar alguns indicadores que, não reflectindo necessariamente volume de PIB, podem ser importantes para medir (ou intuir) níveis de felicidade geral.
O PIB per capita da França é um pedaço menor que o dos Estados Unidos, cerca de 22% inferior.
Contudo, não é seguro que o nível médio de bem-estar em França seja inferior ao dos Estados Unidos.
Em França gastam-se 11,7% do PIB em custos com a saúde contra 17,1% nos Estados Unidos. Gastando muito menos a França tem o melhor serviço de saúde pública do mundo, com uma cobertura teoricamente de 100% da população, enquanto os Estados Unidos, gastando muito mais, tem um nível qualitativo muito inferior e, mesmo com os progressos recentes, ainda tem cerca de 10% da população que não está protegida por sistemas de saúde eficazes.
A mesma avaliação pode ser feita ao nível dos sistemas de educação - nomeadamente, a pré-escolar -, no acesso à justiça, etc.
Não é por acaso que a primeira tentativa (que eu conheça) de medir a FIB, apoiada e promovida pelo poder político, ocorreu justamente em França no tempo de Nicholas Sarkozy. Para o efeito Sarkozy reuniu uma equipa de notáveis que, entre vários prémios Nobel da economia, incluía Joseph Stiglitz.
É claro que, na altura, Sarkozy foi acusado de tentar esconder a má performance económica da França atrás do manto obscuro de medidas genéricas de bem-estar como a FIB.
Talvez até seja verdade que existia uma agenda política escondida de Sarkozy neste tema, contudo, não posso deixar de elogiar a iniciativa e lamentar que tenha, entretanto, sido esquecida.
Mas há um nível mais profundo no qual podemos pensar o tema da felicidade geral.
A felicidade, considerada no plano individual, é um conceito complexo e fugidio. Não é por acaso que raramente a ciência (também a económica) se ocupa da felicidade – à cautela preferimos falar de coisas menos fugidias (?) como “nível geral de bem-estar”.
Para falar de felicidade, mesmo os filósofos não estão totalmente à vontade. Frederic Lenoir, um filósofo francês, que publicou recentemente um livro com uma abordagem filosófica da felicidade confessa que vacilou durante anos antes de acabar e publicar o livro o qual, ainda assim, está longe de ser um calhamaço – duzentas páginas de formato de bolso.
O que nos faz realmente felizes? As coisas agradáveis, talvez. Mas isso pode acontecer apenas no curto prazo. Comer a francesinha pode fazer-me mais feliz agora, contudo, o remorso superveniente pode tornar-me mais sombrio. Ao contrário uma experiência dolorosa, por exemplo um grande esforço para executar uma tarefa agora, pode dar-me níveis de satisfação elevados mais à frente. Ou seja, não podemos ignorar o factor tempo. A felicidade forçosamente envolve não só um conjunto complexo de sensações/emoções (globalidade) como, por outro lado, envolve o factor tempo (duração).
Podemos construir indicadores fiáveis e objectivos para o nível da saúde física de um povo (mortalidade geral, mortalidade infantil, esperança de vida, prevalência de doenças, etc.).
Infelizmente estes indicadores não estão disponíveis para a felicidade – não existem ainda termómetros para tal.
Na verdade a única forma de medir a felicidade é perguntar às pessoas como se sentem. Por exemplo, perguntar, numa escala de 1 a 10, quanto feliz se sente determinada pessoa.
Mas mesmo isto é muito falível. Os seres humanos sofrem de adaptação hedonística. Acontecimentos traumáticos (ou o oposto), como um divórcio ou ganhar a lotaria, provocam alterações no nosso estado percebido de satisfação. Os efeitos desses acontecimentos podem ser duráveis. Se me perguntarem algum tempo depois qual o meu estado de satisfação posso responder 6 numa escala de 1 a 10. Contudo, nada garante que esse 6 represente o mesmo nível geral de satisfação que me teria atribuído a mim próprio antes do choque traumático.
Se a adaptação hedonística é verdadeira então deveremos observar uma baixa correlação entre os níveis auto-reportados de satisfação e os comportamentos emocionais.
Parece haver uma trágica evidência empírica deste caso. O suicídio é talvez a manifestação mais evidente de um estado profundamente infeliz. Contudo não se observa uma grande correlação entre os níveis auto-reportados de satisfação e as taxas de suicídio.
Tentando concluir, diria que devemos cada vez mais aproximar-nos do conceito de felicidade e menos de medidas como o PIB. Contudo, realisticamente, o dia em que o PIB e outros agregados macroeconómicos serão obsoletos e substituídos por medidas fiáveis de felicidade geral ainda está longe.
Não há inqueritos válidos.