JOSÉ FIGUEIREDO

A falsa neutralidade dos mercados

Não há dia que não saia um novo indicador a apontar no mesmo sentido: as sociedades em que vivemos, as sociedades de capitalismo avançado, são cada vez mais desiguais. A cada dia que passa aumenta a desigualdade entre capital e trabalho e, dentro do trabalho, entre os salários mais altos e os mais baixos.

O reconhecimento desta realidade deixou de ser um tema controverso. Mesmo os mais conservadores ou liberais, seja no plano do pensamento político ou do pensamento económico, reconhecem a realidade e não duvidam que é necessário dar-lhe luta.

Não se estranhe, por isso, que medidas fortes de combate à desigualdade estejam, em muitos casos, a ser assumidas por governos conservadores. Por exemplo, no Reino Unido, o atual governo conservador vai aumentar o salário mínimo numa proporção que podemos considerar histórica. Foi um governo conservador (da Sra. Merkel) que decretou o primeiro salário mínimo legal, de âmbito nacional, na Alemanha.

Apenas uma ínfima minoria de radicais ainda defende que o aumento da desigualdade é apenas o resultado de uma saudável dinâmica dos mercados e que o melhor é fazer rigorosamente nada.

O que os radicais nos dizem é que se o mercado, provavelmente seguindo um critério de produtividade marginal, determina que o CEO de uma grande cotada ganhe num mês o que um trabalhador médio da mesma empresa ganha numa vida inteira, não há nada a objetar.

O argumento da produtividade marginal é, em larga medida, uma treta sobretudo quando pensamos nos salários com sete, oito ou mesmo nove algarismos (também existem).

Como medir a produtividade marginal de Tim Cook, o CEO da Apple? Qual a balança de precisão que se utiliza para tal medição?

Eu não tenho como demonstrar cientificamente, seja por raciocínio dedutivo, seja por evidência empírica esmagadora, que o argumento liberal/radical está errado. Contudo tenho como fundamentar as maiores dúvidas.

Se o argumento da produtividade marginal, absolutamente excecional, das criaturas que ascendem aos cargos de CEO das grandes cotadas, fosse verdadeiro, deveríamos assistir a uma relação muito clara entres as respetivas remunerações e a performance das companhias. Quando mais os Presidentes Executivos (CEO) ganharem melhor deve ser o desempenho das empresas.

Acontece que toda a evidência empírica está longe de mostrar tal relação positiva entre remuneração das administrações e resultados das companhias.

Um estudo recente, conduzido por algumas das melhores universidades americanas, mostra que os salários dos Presidentes Executivos (CEO) estão negativamente correlacionados com a performance das ações nos 3 anos seguintes – ou seja, quanto mais ganham os CEO, pior para os acionistas!

Mais. O mesmo estudo mostra como o efeito negativo é tanto maior quanto maior é a disparidade entre o salário do CEO e o dos seus pares e tanto maior quanto maior é o tempo de permanência no lugar.

Não posso prová-lo mas acredito que isso tem que ver com arrogância alimentada a dinheiro fácil e super confiança que leva a decisões de investimento ruinosas. A hubris não é um defeito exclusivo dos heróis das tragédias gregas!

Mas vamos admitir que tudo isto não era mais que o resultado da dinâmica do mercado e que as desigualdades a que assistimos são apenas o reflexo de produtividades marginais diferenciadas.

Defendo a tese de que, mesmo que isso fosse verdade, isso não deveria deixar descansado mesmo o mais liberal dos liberais. Como tentarei demonstrar os mercados não são moralmente neutros e nunca poderiam constituir uma última ratio.

Partimos do princípio de que um bem ou serviço não se altera no seu valor ou no seu conteúdo pelo facto de ser objecto de uma transacção mercantil – acreditamos que uma laranja não perde o sabor nem o valor alimentar pelo facto de passar dos activos do Eng. Belmiro de Azevedo para o meu carrinho de compras no supermercado.

Contudo, embora esse princípio de neutralidade pareça mais ou menos evidente, a verdade é que podemos imaginar bens e serviços cujo valor seria pura e simplesmente destruído pelo facto de serem transaccionados numa perspectiva mercantil.

Imaginemos que a Academia Sueca colocava em leilão um prémio Nobel – ficava para quem desse mais. Ou que a Universidade de Harvard leiloava doutoramentos honoris causa.

É evidente que o facto de serem transaccionados num mercado lhes retiraria todo o valor – sabendo que tinham sido comprados, nem o prémio Nobel nem o doutoramento teriam qualquer valor.

Estes são casos extremos, no entanto, são conhecidos muitos casos, mais subtis ou inesperados, em que a transacção mercantil alterou radicalmente o valor dos bens e serviços.

Num determinado infantário, em Israel, vivia-se o drama dos pais que chegavam tarde para recolher os seus filhos. Como os funcionários não podiam pura e simplesmente abandonar as crianças, acabavam por fazer muitas horas extra não remuneradas além de que a sua vida pessoal ficava perturbada.

O infantário lembrou-se então de aplicar uma multa monetária para os pais atrasados pensando que a sanção económica melhorava o caso.

Aconteceu o contrário. A partir do momento em que chegar atrasado deixou de ser a violação de um dever moral mas um quase direito, que se pagava a determinado preço, os pais atrasaram-se cada vez mais.

Na Suíça ocorreu também um caso curioso. Foi escolhido um certo local para depósito de resíduos nucleares. A população local foi chamada a deliberar se aceitava a localização do depósito tendo a maioria dito sim. De facto, tendo-lhes sido demonstrado que era mesmo o melhor local disponível no país, independentemente do desconforto para quem lá vivia, a maioria dos residentes aquiesceu.

Mais tarde foi decidido atribuir algumas compensações materiais aos habitantes do local. Curiosamente a maioria passou a ser contra a instalação do depósito. Uma coisa era um dever moral de tolerar a instalação em nome do bem colectivo, outra coisa era ser pago para isso.

A questão da recolha de sangue também dá que pensar. Há países como Portugal ou o Reino Unido onde todo o sangue utilizado para fins medicinais é resultado de dádivas voluntárias. Já nos Estados Unidos, uma boa parte do sangue recolhido é pago aos cidadãos que o cedem nos postos de recolha. É frequente, na vizinhança dos casinos, a existência de casas de penhores e, não longe destas, de postos de recolha de sangue – a escada da degradação devidamente completa.

Seria de esperar que o sistema americano fosse superior em termos de segurança de abastecimento e qualidade do sangue. Contudo, é exactamente o contrário – os países que seguem a via das doações totalmente voluntárias têm mais segurança de abastecimento e mais qualidade do produto.

Ou seja, a neutralidade moral dos mercados é uma fábula – há casos em que a mercantilização corrompe a realidade que está subjacente à transacção.

Mesmo nos casos em que a transacção não altera o conteúdo dos bens ou serviços, isso não significa que os mercados sejam neutros.

Vejamos o caso da mercantilização dos órgãos para transplante. Um rim saudável que é comprado tem o mesmo valor funcional que um rim saudável doado voluntariamente.

Pode até dizer-se que a existência de um mercado de órgãos humanos poderia salvar vidas. Pode acontecer que a doação voluntária não esteja disponível mas que um pagamento considerável convença alguém a vender o órgão e assim salvar uma vida.

Talvez! Mas, independentemente da perspectiva utilitarista, não devemos esquecer dois outros pontos de vista: o da justiça das transacções e o da corrupção dos valores.

A ideia de que os mercados são moralmente neutros assenta no pressuposto que as transacções nos mercados são feitas por adultos conscientes e livres.

Não é garantido que quem vende um órgão o esteja a fazer em liberdade – porventura é alguém pobre, ou muito pobre, que desesperadamente precisa de dinheiro para que ele próprio ou sua família sobrevivam. Tenho as maiores dúvidas que num tal mercado as transacções sejam justas e entre iguais.

Mas ainda que o fossem isso não significava que não houvesse um problema moral. Vender órgãos humanos é vender algo que o processo de venda corrompe dada que se trata de algo protegido por valores maiores – a dignidade que atribuímos à vida humana é incompatível com venda em mercados.

Podemos encontrar um caso semelhante na prostituição. Vamos admitir que todos os seres humanos que se dedicam a essa prática o fazem por livre e espontânea vontade como adultos conscientes. Talvez nesse cenário até pudéssemos sobrelevar o tema da justiça. Contudo, todos sabemos que não é verdade. Grande parte (para não dizer a maioria) dos casos de pessoas que se dedicam à prostituição resulta de redução à quase escravatura, de tráfico humano da mais miserável origem ou de condições económicas muito severas.

Seguramente temos um problema de justiça. Mas, mesmo que não tivéssemos, creio que é muito evidente que temos um problema de corrupção. As relações sexuais entre seres humanos são algo que se corrompe no processo mercantil mesmo que acreditássemos que se trata de uma transacção entre adultos livres e conscientes.

A neutralidade moral dos mercados é uma fábula, uma fábula conveniente atrás da qual se albergam práticas absolutamente condenáveis e que é nosso dever não deixar de condenar por mais que nos queiram desmoralizar com critérios de eficiência e quejandos.

O que vimos nos últimos anos em Portugal deveria ser o bastante para nos pôr em guarda!

 

Data de introdução: 2016-05-06



















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