JOSÉ FIGUEIREDO

SOBRE A DESIGUALDADE: Economia Colaborativa, Utopia ou Nova Servidão?

A digitalização das economias modernas permitiu o aparecimento de uma “nova economia” que, através de plataformas eletrónicas, acessíveis nomeadamente por smartphones, aproxima consumidores de bens e serviços a um conjunto inorgânico de fornecedores.

Esta “nova economia” aparece no jargão anglo-saxónico designada por vezes como “gig economy”, também “shared economy” ou “collaborative economy”. Vou utilizar a tradução de economia colaborativa. Talvez esta designação ilustre melhor a tensão, que julgo existir, entre o que poderia ser uma forma de utopia (juntar pessoas acrescentando valor a produtores e consumidores) e uma possível distopia - uma nova e monstruosa forma de servidão.

De todas as plataformas desta “nova economia” a UBER (área dos táxis) é a mais conhecida.

A ideia na base da UBER é interessante. Imaginemos que me dirijo do ponto A para o ponto B no meu automóvel (por exemplo para trabalhar). Imaginemos que alguém tem de fazer um percurso similar e que também vai usar o seu automóvel pessoal. Do ponto de vista das economias, individual e coletiva, é um desperdício a viagem dos dois automóveis. Se uma plataforma eletrónica souber que vou fazer o percurso de A para B e colocar essa informação à disposição de potenciais utilizadores posso dar uma boleia a alguém a troco de um preço razoável.

A AIRBNB, outra plataforma eletrónica muito popular, usa o mesmo conceito mas para a disponibilização de alojamento particular.

Nada disto é novo. Os métodos colaborativos sempre existiram em modelos mais ou menos informais. Se um grupo de trabalhadores se dirige para um mesmo local (uma fábrica, por exemplo) é comum as pessoas deslocarem-se até um determinado ponto e a partir daí juntarem-se num único automóvel ou num conjunto restrito de automóveis.

Aliás, estas associações tendem a ser espontâneas. Francis Fukuyama conta num dos seus livros uma história curiosa passada em Washington durante uma greve dos transportes. A vida ficou difícil para muitos cidadãos que tinham de se deslocar para o trabalho. Passado pouco tempo uma organização informal de boleias, conhecida curiosamente pelos “lesmas”, tinha surgido espontaneamente. As pessoas encontravam em sítios mais ou menos pré-combinados e davam-se mutuamente boleias dependendo de quem naquele dia tinha trazido o automóvel pessoal. Se nos lembrarmos que, por essa altura - desconheço se ainda é assim - Washington tinha a mais alta taxa de criminalidade dos Estados Unidos o caso fica ainda mais curioso.

O único ponto que mudou com a economia digital foi a possibilidade de alargar quase até ao infinito as possibilidades de cooperação. Uma coisa é uma comunidade de trabalhadores de uma determinada fábrica, de pessoas que vivem relativamente próximas, que se conhecem e que têm uma rotina diária de deslocação, outra é uma comunidade de dezenas de milhões de pessoas que estão contactáveis por smartphones e que são potenciais aderentes a redes colaborativas.

Até aqui é tudo utopia – a sociedade realiza os seus fins usando menos recursos e gerando rendimento para uma nebulosa inorgânica de fornecedores. Aparentemente todos ganham. Os consumidores obtêm os serviços a melhores preços, quem precisa de um dinheiro extra faz uns trocos e a comunidade consome menos recursos.

Infelizmente a utopia acaba aqui e a economia colaborativa de cooperação tem muito pouco ou nada.

Vejamos o caso da UBER. Em vez de uma economia colaborativa o que surgiu foi apenas uma alternativa capitalista ao negócio dos táxis. A maioria dos fornecedores de serviços da UBER são empresas capitalistas que detêm os automóveis e empregam, com salários muito baixos, os respetivos condutores. Mesmo os que colaboram com a UBER a título individual fazem-no geralmente a tempo inteiro, ou seja, como profissão e não como forma de complementar o orçamento familiar com uns cobres ganhos sobre o carro da família. No fundo são taxistas, apenas exercem a profissão de uma forma desregulada.

No caso da AIRBNB em vez de uma constelação de colaborantes o que vemos surgir é uma alternativa ao modelo tradicional da hotelaria. Empresas capitalistas estão a alugar apartamentos para depois realugar os quartos através de plataformas eletrónicas. No fundo o que, de facto, surgiu é tão só uma “nova hotelaria” apenas mais informal.

O facto de a economia colaborativa ter de colaborativa apenas o nome coloca duas questões interessantes: a) – tratando-se, em teoria, de projetos de cooperação porque foram empresas capitalistas e não cooperativas a lançar as iniciativas? b)- que efeitos vai ter a economia colaborativa no mundo do trabalho, como vai a nova economia impactar com as relações de trabalho?

Pensando no caso da UBER, porque foi o autor da aplicação informática (aparentemente o mais fácil de fazer) a tomar o controlo do processo e não os potenciais fornecedores do serviço?

Provavelmente porque os fornecedores são um conjunto inorgânico e à maioria deles falta conhecimento e sentido empresarial sequer para colocar o problema.

É muito mais fácil juntar uns poucos engenheiros informáticos para escrever uma aplicação informática do que juntar centenas ou milhares de interessados em fornecer serviços, constituir uma qualquer estrutura orgânica para conduzir o projeto, estar de acordo em relação a tudo isso, etc.

Finalmente há a questão do capital. A UBER nasceu com um financiamento inicial de 200 milhões de dólares. É muito dinheiro para um projeto que pode resultar ou não. Obviamente que para levantar o capital ajudou muito o facto de o promotor do projeto ser alguém (Garret Camp) que já tinha realizado com sucesso iniciativas empresariais arrojadas. Calculo que um grupo de taxistas ou putativos fornecedores de serviços de mobilidade, por mais boa vontade que tivessem e por melhor que fosse a sua ideia, teriam muita dificuldade em levantar uma soma que fosse maior que uma ínfima fração dos 200 milhões de dólares.

O impacto da economia colaborativa nas relações de trabalho é um tema controverso.

Por um lado podemos ter a visão utópica de uma rede inorgânica de cidadãos livres fornecendo serviços num mercado livre e realizando ganhos justos. Contudo, temo que a realidade seja bem mais sombria que o sonho utópico.

Desde logo a maioria dos fornecedores de serviços não são prestadores individuais – no fundo são empresas capitalistas que fornecem os meios e contratam o trabalho necessário para realizar os serviços. Como se trata de áreas não reguladas podemos imaginar que os salários tenderão a ser baixos e não exista qualquer proteção dos trabalhadores – provavelmente em vez de uma rede de cidadãos com iniciativa e justamente remunerados teremos uma nova forma de servidão apelando aos mais frágeis da sociedade (imigrantes, desempregados, etc.).

Mesmo os que exercem a atividade a título individual podem não ser propriamente o ex-libris da livre iniciativa e do espírito empresarial – para muitos trabalhar para a UBER é simplesmente o ganha-pão possível, “empresários” a contra gosto à falta de alternativa melhor.

Recentemente alguém escrevia no Financial Times que se a UBER pode valer mais de 60 biliões de dólares (é a valorização implícita nas últimas operações de capital realizadas sobre a companhia), só pode haver um fundamento para um tão generosa avaliação: o mercado acredita que se trata de uma máquina que pode explorar milhões de servos à escala global.

No entanto, por pior que este cenário do regresso a um quase feudalismo possa parecer, existe um futuro possível ainda mais negro.

A UBER pretende disponibilizar em breve na sua rede os primeiros automóveis que dispensam o condutor, que se guiam por si próprios – se calhar, para justificar os biliões da capitalização, nem sequer precisam de servos.

A economia colaborativa é ainda muito pequena. Um estudo recente da Comissão Europeia calcula que cerca de 100.000 trabalhadores da União Europeia estarão atualmente envolvidos em atividades da economia colaborativa. A estar correta a estimativa estaríamos a falar de cerca de 0,05% do total da força de trabalho, ou seja, quase nada.

Por outro lado a economia colaborativa é muito heterogénea. Tanto podemos encontrar serviços de qualificação baixa (UBER, aplicações de serviços domésticos) como de qualificação alta (designers, serviços de diagnóstico médico). Outra distinção fundamental reside na localidade ou não localidade dos serviços. Certas aplicações para designers estão disponíveis teoricamente para fornecedores no mundo inteiro, contudo serviços como os da UBER ou certos serviços domésticos só podem ser prestados localmente.

É ainda muito cedo para saber se a economia colaborativa vai criar uma nova classe de trabalhadores livres ou uma nova sociedade feudal de senhores e servos.

Do que vi até agora temo bem que se materialize a distopia em vez da utopia.

O futuro dirá.

 

Data de introdução: 2016-10-15



















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