HENRIQUE RODRIGUES

Sobre o poder

1 - O ano de 2017 vai ser ano de eleições autárquicas, ocasião acertada para os eleitores avaliarem, premiando ou repudiando, a gestão de maior proximidade, no nível público, dos interesses das comunidades locais.
Não é essa a única escala de gestão que interfere com a nossa vida.
De facto, ao nível dos poderes públicos, as comunidades são confrontadas com o cruzamento desse eixo de gestão de proximidade com, pelo menos, um outro eixo que igualmente as afecta: o nível nacional, do poder central.
E há ainda lugar à referência a intervenções de instâncias supranacionais, com capacidade de decisão em assuntos concretos que nos dizem respeito, como se fossem autoridades próprias do País, com poderes soberanos sobre o modo como vivemos.
São 3 escalas, 3 dimensões de progressividade, em função da distância e do território abrangido, que nos regulam de forma minuciosa a nossa estadia e acção neste mundo.
Nas instituições de solidariedade, a escala que melhor conhecemos é a da proximidade; que, aliás, praticamos a uma escala ainda mais chegada às pessoas do que a gestão autárquica – embora, no nosso caso, se não trate tanto de gestão da vida dos outros, mas antes da compaixão com eles (no sentido etimológico, cum+passionem).
Mas reconhecemos sem qualquer dúvida a importância que para os direitos e o bem estar dos cidadãos das nossas comunidades locais tem o poder local democrático, bem como as qualidades - ou os defeitos – pessoais dos autarcas na gestão, no nosso interesse, daquela parcela do interesse público que lhes cabe administrar (ad+manus+trahere).
Embora este papel das mãos (manus) nos seja mais próprio, já que a parte simbolicamente mais relevante da acção das Instituições é desenvolvida directamente com as mãos (os cuidados com os utentes, por exemplo, que constituem pura manualidade).

2 - Ao nível nacional, a nossa participação no processo eleitoral é consignada pela circunscrição distrital, correspondendo cada distrito a um círculo eleitoral.
(Não deixa de ser curioso elegermos os deputados, que, por sua vez, decidem dos Governos, por referência a uma instituição caduca, como são os distritos, com extinção anunciada desde a última grande revisão constitucional.)
Mas desde o próprio instante da eleição, o deputado perde a ligação a essa realidade caduca que todavia o elegeu, passando os eleitores a acompanhar a actividade dos parlamentares, não por contacto directo destes com quem os ungiu, mas através da comunicação ou das redes sociais.
Isto é, o nível distrital – ou, dito de outro modo, a filiação num círculo eleitoral como fonte de legitimação – dissolve-se com a mesma eleição, passando a ligação dos eleitores a reportar directamente a Lisboa.
(Nos casos em que os parlamentares nos fazem presente das suas ideias para o País …)
Não se percebe por que razão, sendo os distritos uma realidade que apenas se manifesta em eleições legislativas, não se mudou já de organização eleitoral do território, permitindo satisfazer a vontade constitucional da sua efectiva extinção.
(“Ele há grandes questões! Questões terríveis”, como referia o Conselheiro, no Conde de Abranhos, de Eça de Queirós.)
No próprio dia em que escrevo esta crónica, Paulo Rangel, no “Público”, adverte para os riscos da subsistência de “um corte entre os círculos eleitorais em que os cidadãos são chamados a votar (territoriais) e a esfera em que o poder reside e as decisões são tomadas (não necessariamente “territorializada”), a partir do exercício da mediação entre representados e representantes predominantemente através das redes socais, e do papel desse fenómeno da modernidade tecnológica na desvalorização do mecanismo da representação como base do exercício e fundamento do poder político nas democracias e na contemporânea emergência de apelos à democracia directa, de onde também emerge o populismo.
Aliás, esse apelo à participação em directo já se verifica na televisão e nas redes, com votações abertas ou eleições por chamadas de valor acrescentado.
Em teoria, nada parece obstar a que as eleições gerais se passem a fazer também através da participação plenária da população, já não num circo romano, mas à frente de um computador.
Não ganharemos em liberdades se tal vier a ocorrer, mesmo se por formas “tão sábias tão subtis e tão peritas/ que nem podem sequer ser bem descritas” (Sophia de Mello Breyner Andresen).

3 – O Governo prepara uma reforma profunda das competências e atribuições das autarquias locais, através de transferência de competências até agora radicadas no Poder Central, tal constituindo, aliás, uma das prioridades reclamadas para o ano em curso pelo Ministro Adjunto: nos transportes, na saúde, na educação, na acção social, na gestão dos fundos europeus …
É o que o próprio Ministério proclama no “Público” do dia em que escrevo esta crónica.
Até se explicou essa vontade de despojamento, do centro para a periferia, à experiência de António Costa enquanto Presidente da Câmara de Lisboa, e dos constrangimentos que sofreu à conta da burocracia e ineficácia dos Serviços do Estado - embora quem conheça, em muitas Câmaras Municipais, o funcionamento dos Departamentos responsáveis pelo urbanismo não fique muito animado com a mudança de titular das competências a transferir .
Nada a obstar a essa vontade de diminuir o peso do Estado e de valorizar o princípio da subsidiariedade – sendo a gestão dos fundos europeus um bom exemplo para iniciar esse processo, já que qualquer outro modelo será seguramente melhor, mais rápido e, principalmente, mais racional do que o que hoje existe.
O mesmo se diga a propósito dos transportes urbanos, cuja passagem para a gestão autárquica intermunicipal, no caso da Área Metropolitana do Porto, ocorreu por estes dias.
Sucede, no entanto, que o princípio da subsidiariedade é muito proclamado em abstracto; mas pouco aplicado às situações concretas.
Pelo mesmíssimo princípio de aproximar os serviços públicos dos cidadãos, que constitui o fulcro do referido princípio da subsidiariedade, é oportuno lembrar, quer a quem transfere, quer a quem é beneficiário da transferência, que, quer na educação, quer na acção social, quer na saúde, o País já há muito dispõe de redes de proximidade, a cargo das Instituições de Solidariedade, designadamente na cobertura praticamente universal da educação pré-escolar, na subsistência heróica de tantos ATL, no sistema de cooperação alargado das respostas sociais, no atendimento da população mais desfavorecida.
Estamos treinados no trabalho em conjunto e habilitados na parceria que partilhamos com as entidades públicas, ao serviço das pessoas.
Ao contrário da Inês Pereira, não precisamos de asno que nos leve na montada; mas, tal como a personagem da farsa de Gil Vicente, também não queremos cavalo que nos derrube.

Henrique Rodrigues (Presidente do Centro Social de Ermesinde)

 

Data de introdução: 2017-01-07



















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