1 - Há cerca de 20 anos, o meu amigo Pedro Bacelar de Vasconcelos, então Governador Civil de Braga, ficou conhecido da generalidade dos portugueses pela forma corajosa como defendeu uma família cigana de Oleiros, em Vila Verde, que aquela comunidade queria expulsar de terras que eram suas.
No seu próprio partido, o Partido Socialista, muitos houve, mesmo dirigentes, que não se sentiram confortáveis com a defesa, pelo Governador Civil, de um grupo minoritário e malquerido – desconforto esse devido, nuns casos, a convicções discriminatórias próprias; e, noutros casos, a razões mais pragmáticas: ao temor de que o apoio a uma minoria geralmente olhada com receio e suspeição pudesse afastar votos em eleições locais.
Estive na homenagem que lhe foi prestada em 1999, em Braga, quando foi afastado do cargo de Governador Civil, por pressão dos dirigentes e autarcas locais do seu próprio partido, que o não queriam associado à imagem do mesmo partido no território minhoto aquando das autárquicas de 2001.
O então Governador Civil de Braga não excluía que alguns membros da família em questão pudessem ter cometido crimes – pelos quais, de resto, vieram a ser posteriormente condenados em tribunal.
(Esta condenação judicial comprova, aliás, e ao contrário do que sustenta o discurso racista, que a pertença a uma etnia minoritária não constitui protecção contra a condenação criminal.
Pelo contrário, como desvendam as estatísticas.
E o ponto é esse: se quem comete crimes é julgado e condenado, independentemente da raça ou da cor da pele, é porque a igualdade perante a lei funciona e a pretensa impunidade dessas minorias é uma ficção.
Deve ser punido quem, num processo criminal com as garantias próprias das democracias, prevaricou; e deve ser deixado em paz na sua vida quem cumpre as regras.)
Ora, o ponto fulcral com que o então Governados Civil de Braga fundamentou esse episódio de intervenção cívica e política era o de que o comportamento de alguns membros de um grupo social não pode constituir o pretexto para uma condenação ou o ostracismo para todo esse grupo.
É essa desvalorização da eventualidade de quem não cometeu qualquer crime poder ser abrangido por uma expiação genérica, por uma espécie de culpa colectiva, que define um modo discriminatório de ver o mundo e os outros.
Não é esse, no entanto, para nosso bem, o modo constitucional de nos tratarmos uns aos outros, determinando o artº 13º da Constituição da República Portuguesa que qualquer prejuízo ou privação de direitos, a pretexto da raça ou da religião, é um interdito jurídico.
Mas não é só de um interdito jurídico que se trata.
A igualdade de todos os cidadãos portugueses, perante a lei, mas também nas suas relações uns com os outros, é também um imperativo cívico e moral.
2 – O Dr. Pedro Bacelar de Vasconcelos, hoje deputado socialista, veio de novo recentemente a público, a propósito de um assunto da actualidade, também ele relativo a minorias étnicas.
Presidente da 1ª Comissão Parlamentar, a dos Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, considerou já não ser tolerável o silêncio das autoridades públicas, nomeadamente do Governo, perante a acusação deduzida pelo Ministério Público contra os elementos da esquadra da PSP de Alfragide, por agressões, dentro da esquadra, contra elementos de uma outra etnia minoritária, proveniente das antigas colónias portuguesas em África, e por falsificação de documentos, para fazer passar a ideia de que a fora a polícia a agredida, não o agressor.
(Está-se mesmo a ver que devem ter sido os 18 polícias a ser agredidos por 6 civis, no interior da esquadra!)
Ainda na crónica do mês passado tive ocasião, neste local, de defender que a situação dos incêndios não deveria conduzir à demissão da Ministra Constança Urbano de Sousa; e recordei a sua especialização e carreira pública em defesa dos direitos humanos como garantia de que, à frente das polícias, e para nosso conforto, estaria uma pessoa mais sensível à defesa de tais direitos do que à exibição gratuita de autoridade.
Recordava também nessa crónica passada um antecessor de Constança Urbano de Sousa à frente do Ministério da Administração Interna, Alberto Costa, no tempo do Governo do Engº António Guterres, que, perante acusações de comportamentos inaceitáveis das forças policiais, não se coibiu de afirmar, enquanto Ministro: “Esta não é a minha polícia!”
(Fora Alberto Costa, vindo para a intervenção política das lutas estudantis contra a ditadura, quem nomeara Pedro Bacelar de Vasconcelos Governador Civil de Braga.)
Sem prejuízo do conhecimento que só o processo judicial nos trará sobre a verdade dos factos – com a costumeira lentidão com que certamente a Justiça nos dará conta, se der, do que se passou no interior opaco da esquadra -, talvez que uma exclamação como a de Alberto Costa fosse oportuna.
3 - Como referi no início deste texto, foram também interesses, embora ilegítimos, ligados a um processo autárquico que apressaram a saída de Pedro Bacelar de Vasconcelos das funções de autoridade que desempenhava, já lá vão 20 anos.
E foi a propósito das próximas autárquicas que o tema regressou ao debate público, agora em Loures, com um candidato do PSD à Câmara Municipal.
A rejeição do discurso do candidato contra a comunidade cigana tem merecido o repúdio quase unânime das forças políticas – mesmo do CDS, que abandonou com grande ruído a coligação em Loures.
Por maioria de razão, as forças políticas à esquerda do PSD tem tratado o candidato do PSD de acordo com o seu próprio merecimento.
Mas estas forças políticas, suporte de geringonça, não deixaram, por seu lado, de reagir, cada qual a seu e divergente modo, numa outra situação da actualidade que, não relevando do racismo, deve no entanto tudo ao populismo – a deriva autocrática na Venezuela, a galope para fora da democracia.
Rejeitados pelo PS, com convicção, e pelo Bloco de Esquerda, com constrangimento, os sucessivos golpes de estado promovidos por Nicolás Maduro para manter o poder contra o voto do povo e reprimir qualquer oposição congregam em Portugal o apoio solitário do PCP, ao lado da China e de Cuba.
4 - Todas estas divergências e coincidências se coligam para nos explicar que as questões verdadeiramente fracturantes da democracia, como as que se fundam na desigualdade e na proscrição, de grupos ou e opositores políticos, bem como no desprezo pelos direitos de todos e pela protecção das minorias, como se vê, atravessam, percorrem e dividem várias áreas – verdadeiramente, todas as áreas - do espectro político.
Não são monopólio da direita.
Não há esquerda ou direita quando se está à margem …
Henrique Rodrigues – Presidente do Centro Social de Ermesinde
Não há inqueritos válidos.