Se há uma empresa no mundo que possa representar um papel moral do capitalismo é a Unilever.
Embora o nome da empresa possa não nos dizer muito, é quase impossível que não sejamos clientes mais ou menos assíduos da Unilever.
É altamente improvável que nunca tenhamos consumido um gelado OLÁ, bebido um chá LIPTON, barrado o pão com margarinas BECEL ou FLORA, temperado uma sandwich com HELLMAN’S, ou usado um dos inúmeros produtos de cuidado pessoal de marcas como DOVE, AXE ou SUNSILK. E esta constitui apenas uma pequena amostra das mais de 400 marcas operadas pela Unilever.
Trata-se de uma empresa secular, fundada na Holanda, no final do século XIX, para produzir margarinas e que, nos anos 30 do século XX se fundiu com uma companhia inglesa de produção de sabões. Desde então a Unilever é essencialmente uma empresa anglo-holandesa e um verdadeiro símbolo do capitalismo nos dois países. Atualmente opera em 190 países e, pelo critério da capitalização bolsista, está entre as 10 maiores companhias da Europa.
A Unilever foi, desde o início, uma empresa pioneira. De alguma forma inventou produtos hoje considerados banais como as margarinas, as ervilhas e os filetes de peixe congelados ou as sopas instantâneas. A Unilever foi talvez a primeira corporação a perceber o potencial de comunicação da televisão – o primeiro anúncio na televisão no Reino Unido era de um produto Unilever.
Que na Unilever haja algum prurido em matéria de integridade percebe-se dado o tipo de mercados em que se insere. Quem vende produtos alimentares ou de higiene pessoal a uma escala global não pode dar-se ao luxo da mais leve sombra de dúvida sobre a segurança daquilo que fabrica e distribui.
Por outro lado, muitas das matérias primas que a Unilever utiliza (por exemplo os óleos alimentares para as margarinas) são produzidas em países em desenvolvimento onde as condições laborais podem ser chocantes pelos padrões ocidentais.
A Unilever sempre teve uma tradição de responsabilidade social naturalmente enquadrada nos padrões do tempo – as exigências hoje não são as mesmas do final do século XIX!
Atualmente, sob o impulso do atual CEO, Paul Polman, na companhia desde 2009, a Unilever promove vários programas de desenvolvimento em países pobres. Por exemplo, no Vietnam, está em curso um programa onde, nas escolas, as crianças são estimuladas a observar cuidados básicos de higiene. A escola distribui gratuitamente produtos sanitários, como sabonetes ou dentífricos, obviamente fabricados pela Unilever. Na Índia e em África, milhares de bombas de água ou WC improvisados foram instaladas em aldeias remotas.
O compromisso social da Unilever faz-se igualmente sentir nas sociedades de capitalismo avançado. A Unilever pretende abolir os estereótipos de género da sua publicidade, mesmo quando se trata de produtos propensos a explorar um certo sex-appeal, como os desodorizantes masculinos. As últimas campanhas de marketing estão muito afastadas dos conceitos de masculinidade convencional e, a acreditar nas métricas de vendas, o sucesso tem sido enorme.
Felizmente a Unilever não é a única empresa capitalista do mundo socialmente comprometida. O que a faz única nesta matéria é a dimensão global e a abrangência em que o conceito é testado.
Paul Polman acredita (e fez acreditar os acionistas) que este foco social tem pay-back. Basicamente tem dois argumentos. Em primeiro lugar, os consumidores esclarecidos dos países mais ricos estão disponíveis para pagar um prémio por produtos que tenham o selo da responsabilidade ambiental e social. Depois, as crianças do Vietnam que hoje beneficiam do programa sanitário serão futuros consumidores. É provável que, nessa condição, mantenham alguma lealdade às marcas que frequentaram nas escolas.
O pay-back prometido pelo compromisso social de Paul Polman aparece mas métricas corporativas? Tem conseguido os resultados prometidos?
De certa forma, sim! As vendas da companhia cresceram de 40 biliões de euros para 53 biliões desde que Polman está ao leme da companhia. A capitalização bolsista mais que duplicou – era de 66 biliões de euros em 2009, atualmente está em 150 biliões.
Mas, nesse estrito ponto de vista de métricas de negócio, nem tudo compara bem na Unilever.
A margem bruta da Unilever é de 18%. Essa métrica fundamental está um pouco acima de algumas congéneres europeias, como a Danone ou a Nestlé, mas abaixo da Proctor&Gamble e, sobretudo, muito abaixo da Kraft Heinz.
A verdade é que a comparação com esta última conta e muito!
A Kraft Heinz é uma companhia detida pela 3G (de investidores brasileiros) e pelo inevitável Warren Buffet, o mago de Omaha, para muitos o mais brilhante investidor dos nossos dias.
Em Fevereiro Paul Polman recebia um par de convidados especiais para um almoço nos escritórios centrais da Unilever em Londres. Nem mais nem menos que o CEO da 3G e o chairman da Kraft Heinz.
Para surpresa de Polman, durante o almoço, os convidados informaram-no da intenção de lançar uma OPA sobre a Unilever no valor de 143 biliões de dólares o que, na altura, equivalia a um prémio de 15% sobre o valor de bolsa da companhia.
Polman, que é um atleta notável – embora tenha a compleição de um avançado do râguebi é um fanático da maratona – deve ter tido alguma dificuldade em manter-se seguro à cadeira.
Na verdade, esse projeto não só colocaria em causa a sua permanência como CEO da Unilever, como, acima de tudo, seria o fim do modelo de negócio socialmente comprometido da companhia.
De facto, o modelo capitalismo praticado na 3G e na Kraft Heinz é o mais afastado possível do sonho de Polman para a Unilever. Onde a 3G manda – e manda em muita coisa, por exemplo, detém aquela que é, de longe, a maior cervejeira do mundo - a regra é cortar custos, doa a quem doer, e quem estiver na frente é sumariamente abatido.
Sob a batuta da 3G o modelo de compromisso social de Polman seria simplesmente mandado às urtigas e a empresa entraria num regime de corte de custos (entre outras coisas despedimentos, obviamente), extração de sinergias, fecho ou alienação de marcas menos rentáveis, eliminação de desperdício (podemos imaginar para onde iriam os programas de apoio aos países mais pobres), etc.
Polman obviamente opôs-se ao projeto e fez o que tinha a fazer. Juntou aliados entre acionistas, aproveitou o que parece ter sido um erro de casting da parte da 3G (contratou como relações públicas uma empresa do grupo WPP, por acaso, a empresa que tem as principais contas publicitárias da Unilever) e jogou a cartada política. O governo do Reino Unido fez saber, discretamente, que não apreciava os avanços da 3G e de Warren Buffet e, em menos de uma semana, a oferta foi retirada.
Mas não se pense que Polman tem a guerra ganha. Por um lado, o tempo em que a 3G está legalmente impedida de fazer uma nova oferta já se esgotou. Depois, se há coisa que a 3G e Buffet têm mostrado no passado é paciência. Quando já donos da maior cervejeira do mundo quiseram comprar a SAB Miller (a segunda maior) só o conseguiram à quarta tentativa. Finalmente não é crível que, numa segunda tentativa, a 3G cometa os mesmos erros de principiante.
Mas também pode ser que Polman tenha sorte. Quem sabe a cobiça da 3G pode virar-se para outro lado com menos engulhos políticos, talvez a Proctor&Gambleou algo que nem sequer nos ocorre agora.
Talvez! O que para mim é claro é que o capitalismo moralmente temperado é uma construção muito difícil e muito frágil. Existirá sempre um abutre à espreita…
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