1 - “Na noite escreve um seu Cantar de Amigo/O plantador de naus a haver,/E ouve um silêncio múrmuro consigo:/É o rumor dos pinhais que, como um trigo/De Império, ondulam sem se poder ver./Arroio, esse cantar, jovem e puro,/Busca o oceano por achar;/E a fala dos pinhais, marulho obscuro,/É o som presente desse mar futuro,/É a voz da terra ansiando pelo mar.”
Trata-se do poema que, na Mensagem, Fernando Pessoa dedica a D. Dinis, o rei português da 1º Dinastia que, no litoral da Marinha Grande, no século XIII, entre o mar e Leiria, mandou plantar o pinhal que haveríamos de conhecer como Pinhal de Leiria.
No poema, Pessoa remete ainda para outro aspecto da história pessoal desse Rei, também o seu estro poético, autor que foi de algumas das Cantigas de Amigo, ou Cantares de Amigo, que marcam os tempos inaugurais da afirmação da Língua Portuguesa em modo literário.
Todos aprendemos no liceu o poema atribuído ao Rei-Poeta, “Ai flores, ai flores do verde pino”, lembrando as flores do “pino”, quer dizer, do pinheiro –, sugerindo o rumor das árvores por si plantadas à beira-mar.
(E cabe também aqui evocar sua Mulher, a Rainha Santa Isabel, autora do Milagre das Rosas”, ocorrido quando a Rainha distribuía alimentos pela população mais carenciada e, surgindo-lhe o Rei a caminho, perguntando-lhe o que levava no regaço, lhe afirmou serem rosas, julgando que o monarca lhe levaria a mal essa crítica implícita às políticas públicas, que, então como agora, deixariam portugueses a passar fome.
E passaram a ser rosas – este o milagre.
Era uma espécie de PCAAC à moda da Idade Média – mas cuja lição é igual em todos os tempos: quem exerce o poder não estima particularmente as críticas, por muito construtivas que sejam.
A este propósito, cabe aqui recordar o Primeiro-Ministro, António Costa, no recente debate sobre o Orçamento de Estado, quando, a críticas da Oposição, recordou que o Orçamento não era como a Rainha Santa Isabel, não multiplicava indefinidamente os recursos.
Naquele contexto, melhor caberia a lembrança do milagre da multiplicação dos pães e dos peixes, narrado no Evangelho – mas seria uma evocação porventura pouco laica para muitos dos apoiantes da solução governativa que nos rege.)
Cerca de 80% da área do Pinhal de Leiria ardeu no passado mês de Outubro, fazendo desaparecer nessa vaga, que vestiu de negro os corpos e as almas de tantos de nós, parte da História, e da memória, de Portugal,
Manuel Alegre, Prémio Pessoa em 1999 e Prémio Camões em 2017, cujas cordas sensíveis rimam simultaneamente com a História e com o lirismo, foi quem entre nós melhor lembrou, no rescaldo dos incêndios do final do Verão, essa outra dimensão, mais simbólica, das perdas que Portugal sofreu.
2 – “O plantador de naus a haver” – é a segunda qualificação que Pessoa faz de D. Dinis. (A primeira é a de poeta).
E fá-lo com razão histórica: foi com a madeira das árvores do Pinhal D’El Rei que se construíram a maior parte das naus que levaram os portugueses dos séculos XV e XVI à conquista e à descoberta de velhos e novos mundos.
A primeira expedição, com mais de 200 naus, foi ao norte de África, no início do século XV, no reinado de D. João I, e traduziu-se na conquista de Ceuta.
Ceuta foi cidade portuguesa entre a data em que foi conquistada aos mouros – 1415 – e a Restauração da Independência - 1640 -, não tendo, nessa ocasião em que expulsámos os Reis espanhóis e reconquistámos a nossa autonomia, acompanhado o resto do País na aclamação de D. João IV como Rei de Portugal.
Mais tarde, em 1668, com o Tratado de Lisboa, celebrado entre Espanha e Portugal e que pôs termo à Guerra da Independência, Ceuta permaneceu integrada na Coroa Castelhana, por ser essa a vontade maioritária dos seus habitantes.
Foi mesmo a única possessão portuguesa que permaneceu em mão castelhanas, tendo Olivença, por exemplo, sido então restituída a Portugal.
Ainda hoje assim é, constituindo as possessões espanholas em Ceuta e Melilla, no Norte de África, a fronteira mais meridional da União Europeia.
Trata-se, aliás, de uma fronteira que as televisões nos mostram a cada dia, já que ela constitui uma das portas de acesso – mais de impedimento do que de acesso, é certo - à Europa por parte de fluxos de refugiados provenientes do Magrebe.
E, na verdade, ao olharmos para o mapa da boca do Mar Mediterrâneo, para as Torres de Hércules, na ligação entre o Mar Mediterrâneo e o Oceano Atlântico, apercebemo-nos de que tais possessões estão – por assim dizer – fora do sítio, fora de uma lógica de contiguidade física, fora do alinhamento, encravadas que se encontram no litoral do território do reino de Marrocos.
(A mesma estranheza com Gibraltar, território-Rochedo que define a margem norte do Estreito com o mesmo nome, que separa a Europa da África.
Olhando para o mapa da Península Ibérica, e sem ter em conta as vicissitudes da História, ninguém diria que o território gibraltino não integra o domínio espanhol.
Mas não: é inglês!
Não deixa, no entanto, de ser verdade que a incorporação de Gibraltar em Espanha é uma reivindicação antiga dos nossos vizinhos do lado, a que se tem oposto a vontade dos moradores do Rochedo, por via de referendo.)
3 – Tudo isto a propósito de que será porventura excessivamente ousado dizer que a questão das fronteiras na Europa está arrumada, constitui uma não-questão.
O processo da Catalunha é um bom exemplo de que não está arrumada essa questão, como nenhuma nunca está nas relações internacionais, e de que é possível, não só na teoria, como na prática, criar novos Estados no seio desta Europa civilizada em que nos encontramos integrados.
Dir-se-á que são interesses egoístas que constituem o verdadeiro caldo do impulso independentista, por o PIB catalão ser superior à média espanhola e os habitantes da Catalunha não querem participar no esforço de solidariedade para com as regiões mais pobres da Espanha.
(Argumento que, meio galego que sou, me custa a engolir.)
Mas, na verdade, são sempre interesses egoístas os que movem os povos e as nações, nas suas relações externas.
Na Catalunha, não é diferente.
(Será que nos tornámos madridistas à conta de Cristiano Ronaldo, abandonando as afinidades com a Catalunha, que entre nós eram a norma?)
Também não serve o argumento de que a liderança catalã, de Carles Puigdemont, é fraca e pusilânime, andando aos ziguezagues durante todo o processo, fugindo para Bruxelas para escapar às prisões castelhanas e abandonando o povo que declarou independente de Madrid.
Cada povo escolhe quem o lidere – é a regra democrática.
Para voltar à primeira parte deste texto, e a Manuel Alegre, que acabou de publicar um livro de poemas sobre D. António, Prior do Crato, também prefiro o exemplo deste último Príncipe de Avis, que foi o Rei do povo miúdo e que pegou em armas, em 1580, para defender a Pátria do invasor Filipe I de Espanha, apoiado pelos nobres e pelos poderosos – como D. João de Castela o fora na Crise de 1383/1385.
Perdeu, na Batalha de Alcântara, seguindo depois para o exílio.
Mas, nesta União Europeia a que pertencemos e que tem nos valores da democracia os seus fundamentos, é intolerável aceitar a prisão de quem, com razão ou sem ela, defenda pacificamente as suas convicções e lute por elas sem armas na mão.
Henrique Rodrigues – Presidente do Centro Social de Ermesinde
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