O Governo resolveu festejar os dois anos que leva de vida.
Percebe-se a vontade festiva: há dois anos, poucos auguravam vida longa à geringonça, condenada a balançar entre o virar da página da austeridade (com reversão das medidas tomadas durante o Governo da troika) e o compromisso com as regras europeias, nomeadamente quanto ao controlo do défice, ao cumprimento do tratado orçamental e à diminuição da dívida.
No entanto, a parte predominante deste período correu realmente bem: o desemprego tem diminuído em termos mais amplos do que o esperado, com criação líquida de postos de trabalho, a economia cresce com passada certa, o clima social tem sido pacífico – como combinação de dois factores: em primeiro lugar, a efectiva restituição de rendimentos nos escalões mais baixos, replicando o que fizera Passos Coelho; por outro, o preço a pagar pelo PCP pela integração na solução parlamentar de Governo …
Até a Selecção Nacional ganhou o Campeonato da Europa, assim colaborando no suplemento de alma que a nova solução de Governo induzia – como geralmente sucede com as novas soluções de Governo, sejam quais sejam, em todos os tempos.
Mais vale cair em graça do que ser engraçado … e, na verdade, até há pouco tempo, pareceria que todos os elementos se conjugavam para levar a nau a bom porto e à bolina.
Chamam a essa conjunção favorável “estado de graça” – expressão que, no meu tempo de rapaz, significava o estado da alma após a confissão, depois de feita a barrela dos pecados.
(Não sei se vai bem a entidades tão sujeitas à tentação e ao pecado, como são os Governos – e quem detém poder em geral –, esta homologia com a alma lavada …?)
2 – Parece, no entanto, consensual que esse clima acabou.
O “clic” foram os incêndios de Junho e Outubro.
Não interessa agora muito, na perspectiva da percepção colectiva, saber se a culpa foi do Governo em funções, ou de outros anteriores, ou de todos – nem se o Governo está a fazer o que pode para mitigar os danos (os que podem ser mitigados …).
O Estado falhou na protecção que deve aos seus cidadãos.
E, por mais que o Governo apresente medidas para nos convencer de que faz o que pode, o corte entre quem manda e quem é mandado permanece como uma cicatriz na relação entre eleitores e eleitos.
Como escreveu Alexandre O’Neill: “Você tem-me cavalgado/seu safado! /Você tem-me cavalgado,/mas nem por isso me pôs/ a pensar como você.//Que uma coisa pensa o cavalo;/ outra quem está a montá-lo.”
Ora, com efeito, a desgraça dos incêndios – e, talvez com maior probabilidade, o ralhete do Presidente da República – parece ter tirado a lucidez e o senso comum aos que nos pastoreiam no turno actual, fazendo encavalitar nessa infeliz reacção à tragédia uma sucessão de inabilidades – para utilizar um vocábulo piedoso.
(Sou do Porto, entendo que a Região Norte tem sido maltratada pelos sucessivos Governos, defendo a regionalização política e administrativa do País – mas preferia ter sido poupado à coreografia e encenação a propósito da transferência, que não se fará, mas fingirá fazer-se, do INFARMED para o Porto.
Fiquei, pelo menos, a saber que o INFARMED tem dos melhores técnicos e laboratórios do mundo – para variar, somos sempre os melhores … -, o que permite, por esta via, falar do INFARMED sem ser a propósito dos concursos para atribuição de alvarás às farmácias, sector onde as notícias não têm sido tão benevolentes.)
Finalmente, a aprovação final do Orçamento de Estado para 2018 trouxe à luz uma outra linha de fractura, mas agora fractura interna, dentro da própria geringonça: a fractura que separa, como um abismo, o PS dos parceiros da coligação, quanto ao corte nas rendas das grandes produtoras e distribuidoras de electricidade e que exigiu a intervenção do próprio Primeiro-Ministro.
A fractura da factura.
Como nos recordamos, não obstante as suas sabidas malfeitorias, a própria troika aconselhou o Governo de Passos Coelho a cortar na factura energética, diminuindo de forma significativa o montante das rendas pagas à EDP – e outras empresas do ramo -, a título de compensação pelo investimento em energias renováveis.
Passos Coelho, nesse particular, não foi além da troika – pelo contrário, ficou muito aquém; e António Costa acabou por nos vir lembrar que não é só nas políticas europeias que o PS nunca se encontrará com os partidos que, à sua esquerda, suportam o Governo, subsistindo zonas de convergência com o PSD/CDS também no tributo ao grande capital.
3 – Ora, em meu entender, em tempo de luto não se fazem festas – nem o clima geral permanece tão efusivo que justifique essa espécie de alegria obrigatória que as festas também são.
Festejar o quê? Festejar com quem?
Até Junho passado, com certeza: não havia sombras nem pesar, o ar estava límpido, as pessoas felizes, a esperança de um futuro melhor constituía um anseio colectivo e generalizado.
E festejar com quem?
Pois só pode ser com o País…
Então não estamos cá todos?
Não se nos aplicam as medidas favoráveis do Governo?
Não estamos sujeitos às más?
Se a festa era para louvores e congratulações pelos dois anos, só aquele grupo mereceu o convite?
E se era para avaliação e crítica – com vista à melhoria -, não teríamos todos direito a dar palpites?
Com efeito, não foi tanto o facto de o Governo ter patrocinado um painel escolhido, pagando-se-lhes 200 euros por cabeça e por pergunta.
Se foi o Estado a pagar, está evidentemente mal; mas isso é o menos.
Habituados que estamos a pagar milhares de milhões de euros para resgate de bancos e banqueiros, para pagamentos das rendas das empresas de electricidade ou das parcerias público-privadas, os trocados pagos aos membros do painel não aquentam nem arrefentam.
É a fita, é a encenação, é a coreografia, que dói.
Perdoe-se-me a palavra, mas é a que encontro que melhor se adequa à função: é a pelintrice.
4 – Quanto à fractura: oh! Geringonça, quem há-de “Cerzir /tua discreta/cicatriz/e diluir-/lhe os sulcos/sem raiz”(a)?
Adivinho que não será o Presidente da República.
José Augusto Seabra, Tempo Táctil
Henrique Rodrigues – Presidente do Centro Social de Ermesinde
Não há inqueritos válidos.