1 - O Governo tem referido, a propósito do sistema de cooperação com o Sector Solidário, que o montante das transferências para as Instituições Particulares de Solidariedade Social, para cumprimento dos acordos de cooperação, rondou os 1.400 milhões de euros, em 2017.
(Como sabemos, não se trata de transferências, em sentido rigoroso e próprio; na verdade, as comparticipações da Segurança Social não consistem verdadeiramente num financiamento público da actividade das Instituições, antes constituem uma contrapartida contratual, um preço pelos serviços contratualizados, com vista à satisfação das necessidades dos utentes.
Mas não é isso que hoje me faz pegar no tema …)
Vamos partir dessa verba, que o Governo refere – 1.400 milhões de euros.
Trata-se de um montante significativo – embora menos de metade do valor das transferências anuais do Estado no âmbito das parcerias público-privadas na Saúde.
O meu forte não são as contas; mas, como costuma dizer o meu vizinho do lado neste espaço de opinião do “Solidariedade”, o Pe. José Maia, uma 4ª classe bem feita, no nosso tempo, é habilitação bastante para as necessidades de cálculo linear e para o dia a dia.
Foi munido dessa habilitação que entendi útil fazer um folow up das despesas na instituição a cuja Direcção presido, o Centro Social de Ermesinde – que é uma instituição-tipo, com um alargado conjunto de respostas sociais e cerca de 130 trabalhadores.
As Contas relativas a 2016 – últimas aprovadas -, aliás conferíveis, já que estão publicadas no site, foram o documento sobre que incidiu o meu exame; e é das principais conclusões a que cheguei que pretendo dar conta nesta crónica.
O volume das receitas totais da Instituição, em 2016, foi de 2.582.000,00 euros (valor arredondado).
O montante das comparticipações públicas – Segurança Social, IEFP e Projectos – foi de 1.342.000,00 (cerca de 52% da receita total)
Os gastos com pessoal atingiram os 1.696.000,00 – cerca de 66%, dois terços da despesa global.
As outras principais causas de despesa são, como é corrente, os fornecimentos e serviços externos – 480.000,00 euros – e as matérias consumíveis – 201.000,00 euros.
Do volume de despesas com pessoal – 1.696.000,00 euros -, as remunerações ascendem a 1.294.000,00 euros, sendo o valor restante, de 402.000,00 euros, o montante da TSU paga pela Instituição à Segurança Social.
Por sua vez, os valores da retenção da TSU devida pelos trabalhadores corresponderam, nesse ano de 2016, a 142.000,00 euros, sendo a retenção sobre os salários, relativa ao IRS devido pelos trabalhadores, de 140.000,00 euros.
Significa isto, singelamente, que, só na vertente salarial, regressaram aos cofres do Estado – Segurança Social e Autoridade Tributária -, no mesmo ano de 2016, 684.000,00 euros.
Como dizia o outro: é só fazer as contas.
Só em taxas e impostos directos, regressam aos cofres do Estado 50% das verbas recebidas das entidades públicas.
50% é metade – para quem não se lembre!
2 – Mas não podemos ficar por aqui.
Vamos supor que, dos 1.294.000,00 euros de remunerações pagas aos trabalhadores, estes destinam ao consumo cerca de 50% do respectivo montante (tratando-se de remunerações em regra baixas, a propensão ao consumo será porventura superior).
São 647.000,00 euros de compras por ano.
A uma taxa média de 15% - tendo em conta que esse consumo compreenderá bens a uma taxa de 6% e outros a uma taxa de 23% -, tal significa que, do montante de salários pagos na Instituição, 97.050,00 euros regressaram aos cofres do Estado, a título de IVA.
A segunda maior despesa da Instituição foi, como já referi, com fornecimentos e serviços externos: energia, combustíveis, transportes, água, trabalhadores independentes …: 480.000,00 euros.
À taxa normal de IVA, 23%, a Instituição fez ingressar no Estado, a este título, 110.400,00 euros.
Finalmente, nos géneros alimentares, cuja despesa atingiu 201.000,00 euros, a taxa de 6% de IVA atinge 12.060,00 euros – de que são reembolsados 50% (6.030,00 euros).
Ora, somando tudo, temos o volume de reingresso nos cofres do Estado, num caso testado, numa Instituição concreta, de 897.480,00 euros.
Representa 67,6% do valor das comparticipações públicas, que foram, como referi, de 1.342.000,00 euros.
3 – Significam estas minhas contas de merceeiro que, dos 1.342.000,00 euros que a Instituição recebeu do Estado em 2016, mais de 67% regressaram ao regaço do mesmo Estado.
Dito de outro modo: os 1.342.000,00 euros de comparticipações públicas correspondem, em despesa efectiva do Estado, a apenas 444.520,00 euros.
Transpondo do exemplo singular da Instituição que me serviu de teste para os valores nacionais, a conclusão é idêntica: os 1.400 milhões de euros que o Governo afirma transferir por ano para o Sector correspondem, feitas as contas, a apenas 462 milhões de euros de despesa efectiva líquida.
4 - Peço desculpa por um registo e um tom para esta crónica tão desafeiçoados do seu cânone normal.
Mas, de vez em quando, regressam do passado arqueológico algumas vozes que pretendem, com falsas razões e tortuosos argumentos, instaurar dúvidas ou alegar objecções ao figurino que a Constituição da República Portuguesa consagrou como o nosso original modelo de protecção social, com um pilar constituído por instituições particulares de solidariedade social, fora do Estado, mas em cooperação com ele.
Defensores estrénuos da manutenção sem alterações do texto constitucional, tais vozes não desdenhariam uma ou outra inconstitucionalidade avulsa, se se traduzisse na conformidade aos seus preconceitos.
Estamos outra vez em mar revolto.
Mas, ao menos, que o debate se faça sem descarrilar da verdade e dos factos.
Para isso, é bom que a conversa comece pelo reconhecimento de que Portugal faz o milagre de manter uma rede nacional, de malha fina e capilar, até à mais pequena e longínqua célula, de equipamentos e serviços, para mais de 500.000 pessoas por dia, com cerca de 200.000 trabalhadores e mais de 4.000 Instituições, com um gasto de apenas 462 milhões de euros por ano.
Isto é, por 38,5 milhões de euros por mês.
Pedimos, na verdade, meças em eficiência e parcimónia.
E damos lições em humanidade.
Henrique Rodrigues – Presidente do Centro Social de Ermesinde
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