Escrevi em tempos sobre a possibilidade de o capitalismo ser um agente moral.
Neste domínio do poder excessivo das gigantes da tecnologia podemos ver como, também aqui, o capitalismo pode ter um papel moral.
A Unilever, o segundo maior anunciante do mundo, avisou as plataformas eletrónicas, onde gasta um quarto do seu orçamento de marketing, que pode em breve deixar de investir no meio.
A razão é muito simples: a Unilever não quer ver as suas marcas e os seus produtos próximos sequer do que, segundo as palavras do statement da companhia, ameaça tornar-se “apenas um pouco melhor que um pântano em matéria de transparência”.
A posição da Unilever nem sequer é inédita. A Proctor & Gamble, uma multinacional gigantesca de produtos de grande consumo, e, curiosamente, uma companhia que tal como a Unilever tem uma tradição de responsabilidade social muito forte, também já tinha formulado uma atitude similar.
Trata-se de dois dos maiores anunciantes do mundo e, seguramente, o que decidirem nesta matéria tem peso.
No entanto, sendo realistas, mesmo atitudes morais com o peso que estas possam ter, são insuficientes para lidar com o monstro.
Por isso interessa discorrer um pouco mais sobre as soluções e sobre o que podem e devem fazer os poderes públicos.
No último texto discorremos sobre alguns possíveis remédios a impor às gigantes tecnológicas.
Reconheço que há um ângulo possível de análise que me escapou.
A origem do poder das gigantes tecnológicas é o que os economistas chamam de “externalidades de rede”.
Quando compro um iogurte Danone em vez de um iogurte Nestlé, em princípio, não provoco nenhum efeito sobre a procura dos iogurtes Nestlé ou de qualquer outra marca. A minha influência nesta matéria não ultrapassa o frigorífico lá de casa.
Mas não é assim, por exemplo, com as redes sociais.
Se sou um utilizador de Facebook, os meus amigos, aqueles com que partilho informação, tendem a usar a mesma plataforma por razões óbvias de conetividade. A contrário dos iogurtes, a minha escolha em matéria de plataforma eletrónica condiciona a escolha dos que me são próximos.
Algo similar aconteceu com os telemóveis.
Quando escolhíamos uma rede de telemóveis tendíamos a escolher aquela que era usada pelo maior número de pessoas com as quais tínhamos chamadas frequentes.
Isto, naturalmente, colocava em grande vantagem os operadores incumbentes e limitava muito a competição entre prestadores de serviço.
Por outro lado, mudar de rede implicava mudar de número com o óbvio inconveniente de ter de atualizar um grande número de pessoas com o novo número. Também por aqui a concorrência entre prestadores ficava limitada.
Foi para isso que se inventou a portabilidade dos números de telemóvel - posso manter o meu número mesmo que decida mudar de rede.
Com a portabilidade a concorrência aumentou e os consumidores ganharam.
O problema com as “externalidades de rede”, quando são fortes como é o caso das plataformas eletrónicas, é que os negócios tendem para monopólios naturais.
Lidar como monopólios naturais não é fácil e, no passado, foram basicamente duas as aproximações tentadas- a regulação e dispersão.
Quando, no final do século XIX, os monopólios dos caminhos de ferro abusavam do poder monopolista natural aumentando preços para lá do razoável, a resposta encontrada foi a da regulação, nomeadamente a imposição de preços máximos por uma autoridade pública.
Com a Standard Oil, que a dada altura se constituiu como um monopólio do setor petrolífero, a solução foi obrigar a empresa a dividir-se em empresas mais pequenas e com menos poder de mercado.
A regulação e a dispersão forçada são sempre problemáticas e se historicamente resolveram alguns problemas, a verdade é que criaram outros.
Por outro lado, essas abordagens tradicionais funcionam mal quando falamos das gigantes da tecnologia.
Estas abordagens tinham sempre como base defender os consumidores de práticas de preços predatórios.
Quando falamos hoje do poder monopolista da Facebook ou da Google é difícil argumentar com a prática de preços predatórios – nem sequer pagamos pela utilização das plataformas!
Regular preços não faz sentido e também não se vê que vantagem poderia vir de obrigar a Facebook a dividir-se em unidades mais pequenas – a manterem-se as externalidades de rede, em breve, uma das novas plataformas tenderia, de novo, para um monopólio natural.
Mas, mais uma vez, a dificuldade do tema não pode ser argumento para a inércia dos poderes públicos.
Uma solução potencialmente interessante seria replicar o modelo da portabilidade dos telemóveis.
Imaginemos que existe um concorrente da Facebook, de nome XPTO e que adiro a essa plataforma. Se os meus amigos não estiverem na XPTO perco a conetividade. Contudo, se a Facebook fosse obrigada a reencaminhar para os meus amigos toda a informação que coloco na XPTO, não perderia a conetividade e a XPTO poderia verdadeiramente concorrer.
No fundo é o que se passa com os emails. A interconetividade das plataformas assegura que não se podem formar externalidades de rede e que não se criou, felizmente neste caso, um monopólio natural que teria enriquecido desmesuradamente alguém.
Mas é igualmente interessante voltar ao tema dos conteúdos.
A Facebook, por exemplo, monetiza conteúdos e informação pessoal que gratuitamente lhe entregamos.
Porque diabo haverá a Facebook de monetizar conteúdos pelos quais não paga e fazer dinheiro com a informação pessoal que recebe de graça?
Uma abordagem justa do tema seria dar a escolher ao utilizador entre receber dinheiro pelos conteúdos e pela informação pessoal e, em conformidade, aceitar a sua comercialização ou, como alternativa, não receber dinheiro mas, nesse caso, a rede social não poderia fazer negócio com essa informação.
De certa forma, as televisões de sinal aberto fazem dinheiro com publicidade que apenas vale porque assistimos aos seus programas.
Não é uma situação similar à das plataformas eletrónicas?
De todo. Desde logo para captar a minha atenção, a minha audiência e o potencial de monetização, a empresa de TV tem de investir fortemente em conteúdos pagos, de produção própria ou comprados.
Por outro lado, as externalidades de rede aqui funcionaram historicamente de outra forma.
No início fazer televisão era tão caro que a tendência foi para a constituição de monopólios públicos.
Quando os custos de produção e transmissão baixaram o bastante o negócio ficou acessível a operadores privados.
Mas aí o estado pode regular a privatização e evitar as consequências mais danosas em matéria de concorrência.
Com as gigantes da tecnologia a coisa é mais complicada, mas não é intratável. A omissão dos poderes públicos não é simplesmente aceitável.
Não há inqueritos válidos.