1 - O jornal “Expresso” mantém uma rubrica, na terceira página, designada “Duelo”, onde confronta posições divergentes sobre um mesmo tema.
Em cada semana, duas personalidades de diferentes opções ideológicas, ou de discordâncias circunstanciais, prestam o seu depoimento sobre o mesmo assunto, sobre a mesma questão, sobre o mesmo fait-divers, que lhes é colocada pelo jornal.
(Esta semana é sobre os lugares de estacionamento que a Câmara de Lisboa arranjou à Madonna!)
Há uma semana atrás, a pergunta era esta: “A economia aguenta um salário mínimo acima dos 600 euros?”
Foram respondentes José Manuel Fernandes, ex-Director da CIP (Confederação da Indústria Portuguesa) e da AEP (Associação Empresarial de Portugal), que defende a posição afirmativa; “Sim, claro que aguenta.”; e Pedro Ferraz da Costa, Presidente do Fórum para a Competitividade e ex-Presidente da mesma CIP, de opinião oposta.
Como se vê, foram duas figuras representativas do associativismo empresarial que foram convidadas a dar a sua opinião – ambas do mesmo suposto lado da chamada luta de classes -, e, não obstante a aparente identidade de representação social dos interesses económicos, a sua divergência sobre assunto tão candente da actualidade não podia ser maior.
Acresce que, além de antigos dirigentes do associativismo empresarial, ambos são empresários – são patrões, para utilizar uma semântica mais em desuso: Pedro Ferraz da Costa é presidente do Grupo Farmacêutico Iberfar; e José Manuel Fernandes fundador e presidente da Frezite.
Ainda a este propósito, e tendo em conta o acordo a que o Governo chegou, na Comissão Permanente de Concertação Social, com os representantes do patronato e com a UGT, sobre o aumento da Remuneração Mínima Mensal Garantida e outras mexidas na legislação laboral, a imprensa tem-nos informado que o actual Presidente da CIP, António Saraiva, vem sugerindo a possibilidade de o salário mínimo para 2019 poder mesmo ultrapassar esse valor dos 600 euros, com aceitação pelos patrões dessa majoração em relação ao Acordo de Concertação Social.
2 – Embora, para um dos articulistas, a economia aguente, e, para o outro, o choque seja excessivo, ambos consideram que a questão se não coloca da mesma forma para todos os sectores.
José Manuel Fernandes exprime, a certo passo, a opinião de que “o tecido económico é multifacetado (e que) há sectores mais atrasados, como a agricultura ou certos serviços, que podem sofrer com uma subida brusca do salário”, propugnando que “o ideal seria até cada sector lidar com níveis salariais adequados à sua produtividade …”
Por seu lado Pedro Ferraz da Costa vai mais ao ponto que nos interessa, opinando o seguinte: “A economia aguenta? Não se pode generalizar, certamente que há sectores que estão imunes ao agravamento do custo salarial … A agricultura, os serviços tradicionais e as instituições particulares de solidariedade social serão as áreas mais afectadas. No caso das instituições sociais, o aumento dos encargos rebenta com o orçamento, a menos que reduzam pessoal ou a qualidade da assistência prestada.”
Normalmente, não concordo com as posições político-económicas de Pedro Ferraz da Costa, geralmente marcadas por uma perspectiva conservadora, pouco atenta aos direitos dos trabalhadores e à essencial dignidade do trabalho como fundamento do nosso modelo social, tributário da social-democracia e da Doutrina Social da Igreja Católica.
Mas não deixa de ser significativa e acutilante a sua referência às instituições particulares de solidariedade social e à dificuldade destas em “acomodar” – para utilizar um vocábulo muito na moda – as sucessivas modificações do salário mínimo, designadamente de 2014 para cá.
É verdade que tem sido difícil, designadamente por não ser possível, nuns casos, ou desejável, noutros, aliviar esse “rebentar” do orçamento com as medidas enunciadas por Ferraz da Costa: nem a Segurança Social permite a diminuição do pessoal, mesmo nos casos em que tal se justifica; nem as Instituições admitem sequer reduzir a qualidade dos serviços.
Por outro lado, a definição e sustentabilidade salarial em função da produtividade de cada sector, como refere José Manuel Fernandes, não se afigura capaz de resolver a nossa questão.
As Instituições vêm aumentando, ano após ano, a sua produtividade, traduzida no facto de, com os mesmos recursos humanos, virem atendendo cada vez mais utentes – e estes cada vez mais dependentes de apoios sociais.
Mas as mesmas Instituições, ao contrário das empresas em geral, não podem fazer repercutir no preço dos seus serviços os ganhos de produtividade.
Pelo contrário: a diminuição dos recursos das famílias e a circunstância de se dever – e querer – privilegiar o atendimento dos mais desfavorecidos tem feito com que, ao aumento da produtividade e ao alargamento dos serviços das Instituições, corresponda, não um aumento das receitas, mas uma diminuição.
Não é um paradoxo e será sempre assim: quanto mais necessitados forem e quanto mais sejam os utentes, como vai ser, menores serão os recursos para lhes fazer face.
3 – Esta circunstância, de nos encontrarmos num mercado de preços minuciosamente regulados pelo Estado, em que as Instituições não possuem senão escassa margem de gestão, acumula, do ponto de vista da (in)sustentabilidade, com a progressiva actualização do salário mínimo e seu impacto nos custos com pessoal, também imputável, em primeira linha, ao Estado.
Trata-se de uma tenaz, em que o Estado aperta e sufoca por cima e por baixo, quer nas regras e na formação dos preços, quer ao dispor universalmente sobre salários, não se mostrando à altura das responsabilidades que as Instituições asseguram, como pilar constitucional do nosso sistema de protecção social, que o distingue, para melhor, dos nossos parceiros da Europa.
Mas o caminho não pode passar, a meu ver, por uma solução de diferenciar salários mínimos consoante o sector de actividade e a produtividade, como me parece inferir-se da opinião de José Manuel Fernandes – e que corresponde a uma tradição, felizmente revogada, do nosso sistema de remunerações mínimas garantidas.
Há alguns anos, havia o salário mínimo para a indústria, o comércio e os serviços; outro, menor, para os trabalhadores agrícolas; outro, também menor, para os trabalhadores do serviço doméstico.
Não tem qualquer sentido e seria motivo de escândalo o estabelecimento de um salário mínimo de 2ª divisão para as Instituições Particulares de Solidariedade Social.
Mas já o faz a participação do Sector Solidário na Comissão Permanente de Concertação Social, para debater com outros parceiros que a integram – alguns com menor densidade de representação do que a CNIS – a definição das políticas gerais do nosso País em matéria económica e social.
É certo que, no ano passado, e a propósito também do acordo de concertação social, após o chumbo da diminuição da TSU, a Comissão Permanente de Concertação Social pareceu atenta às contingências do aumento da RMMG na carga salarial das IPSS, recomendando ao Governo a correspondente compensação em sede de Compromisso de Cooperação.
Mas foi episódio único; este ano, embora a Adenda ao Compromisso tenha também procurado compensar o impacto decorrente desse aumento em 2018, não o fez sob o comando de uma recomendação do mais alto nível da concertação social.
E é disso mesmo que se trata: a cooperação deverá ser guindada ao nível das opções da política económica do Estado, no seio da Concertação Social, integrando representantes do Sector.
Que espada cortará este nó górdio?
Henrique Rodrigues – Presidente do Centro Social de Ermesinde
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