Dediquei em tempos uma série de crónicas ao tema das gigantes da tecnologia. Fi-lo porque acredito que as gigantes tecnológicas, e o aproveitamento comercial que fazem das oportunidades criadas com o aparecimento da internet, são a maior ameaça aos regimes de democracia liberal em que nos habituámos a viver e que damos, erradamente, por garantidos para todo o sempre.
Por estes dias ficámos a saber, graças a uma investigação do Parlamento do Reino Unido, que a Facebook assinou contratos com várias empresas pelos quais garantia acesso a dados pessoais dos utilizadores. A investigação também demonstrou que, embora fosse absolutamente claro dentro da companhia que se tratava, no mínimo, de um comportamento de legalidade duvidosa, os gestores de topo, Marck Zuckerberg incluído, validaram as operações.
Não foram mais estas gravíssimas revelações que me levaram a escrever de novo sobre o tema. Volto a ele porque há um par de semanas ocorreu em Lisboa a Web Summit.
Confesso que não dei muita atenção ao evento. Aquilo transformou-se numa festarola vagamente parola, entre a feira de vaidades e o mercado do pechisbeque embora, a acreditar nas notícias, continue a atrair dezenas de milhar de visitantes o que é ótimo para a cidade de Lisboa e para Portugal.
No entanto, houve um momento que manifestamente valeu a pena. Refiro-me à intervenção de Tim Berners-Lee, que muitos consideram o pai da internet.
Sir Tim Berners-Lee não se limitou a “inventar” a internet – ofereceu a tecnologia à humanidade. A internet nasceu como utopia, como um meio de comunicação democrático, não hierárquico e fora do controlo de qualquer autoridade constituída.
Passaram 30 anos e o balanço pode não ser muito bonito.
É verdade que há hoje 2 biliões de web sites no mundo, um site por cada quatro habitantes do planeta.
É verdade que, graças à web, aconteceram coisas fantásticas. Ditaduras e regimes corruptos foram derrubados, muitas histórias de corrupção de poderosos foram denunciadas. São inúmeras as histórias individuais de progresso e salvação que, na ausência da web, talvez não tivessem sido simplesmente possíveis.
Mas há um lado negro.
Atualmente apenas 3 empresas dominam a internet à escala global. A Google concentra 90% das pesquisas online. A Amazon tem mais de 50% dos serviços de cloud sob a sua guarda e a Facebook terá 2,2 biliões de utilizadores sem falar nos 1,5 biliões da WhatsApp que também lhe pertence.
A utilização de algoritmos é pervasiva. Por exemplo, sabemos que algoritmos de sites de recrutamento estão calibrados para favorecer candidatos masculinos e brancos. Os empréstimos a taxas punitivas são direcionados para pessoas pobres e em stress financeiro, ou seja, provavelmente, sem alternativas.
As redes sociais têm sido sistematicamente utilizadas como instrumento político e constituem o meio privilegiado de disseminação de notícias falsas ou campanhas de difamação sem qualquer controlo e sem qualquer possibilidade de responsabilização dos autores. Como é óbvio, os grandes utilizadores destas potencialidades são os regimes totalitários que o podem fazer dado que não estão sujeitos a escrutínio democrático.
A utopia está em risco de virar distopia.
O que Tim Berners-Lee veio fazer a Lisboa foi propor um novo contrato para a web, salvar a utopia.
Esse contrato tem 3 capítulos: acessibilidade, segurança e neutralidade.
Em relação à acessibilidade, apesar do progresso, muito ainda está por fazer. Em 2005 cerca de 16% da população mundial tinha acesso a web. Hoje somos cerca de 4 biliões, metade da população. A quantidade de informação trocada é estonteante. Por dia passam pela web 2,5 biliões de GB de informação, o equivalente a 1 bilião de filmes.
E, no entanto, ainda há metade da humanidade que está fora da Web. Imaginaríamos que, sendo a web uma coisa dos tempos modernos, a discriminação negativa das mulheres seria aqui menor que no passado. Nada mais errado. A probabilidade um homem estar online é 33% superior à das mulheres. Pior, segundo os estudos mais credíveis, na base desta discriminação está o mesmo e maldito fator de sempre – o menor poder económico.
Em matéria de segurança a situação é problemática. Sabemos que os nossos dados pessoais e que a informação que produzimos pode ser utilizada, sem nosso consentimento consciente, para fins comerciais ou, no limite, para atividades ilícitas. Muitas pessoas dão consentimento em aplicativos com linguagem jurídica de difícil compreensão ou até sem sequer ler os termos e condições.
Mas mesmo no melhor dos mundos, em que todas as empresas respeitassem a confidencialidade dos dados, ninguém pode garantir a segurança porque muitas vezes os sistemas são invadidos por entidades maliciosas. Desde 2004 foram reportados cerca de 300 eventos de invasão significativos. E quantos foram escondidos, por razões reputacionais ou outras? Simplesmente não sabemos!
Não devemos contar excessivamente com as autoridades públicas nesta matéria. O papel da Web Foundation refere que, numa análise a 65 países, concluiu que 1,5 biliões de pessoas vivem em geografias em que nem sequer existe legislação de proteção de dados pessoais.
Finalmente a neutralidade. Hoje a web é essencialmente ocidental e de língua inglesa.
Atualmente mais de metade do milhão de sites mais frequentados é de língua inglesa. No entanto, apenas 25% da população do planeta domina a língua inglesa.
Um outro risco relevante é a ausência de neutralidade no tratamento do tráfego e da informação.
A Web Foundation, de que Tim Berners-Lee é Presidente, propõe soluções para todos os capítulos. Trata-se quase sempre de soluções razoáveis que qualquer pessoa de reta intenção não deixaria de subscrever.
O problema é que essas soluções terão de ser implementadas pelos poderes públicos. E, nesse domicílio, o que temos visto não nos deve animar excessivamente.
A Europa, que é de longe o lugar onde apesar de tudo existe maior consciência destes problemas e maior disponibilidade política para os enfrentar, não conseguiu pôr-se de acordo para uma tributação coordenada das gigantes da tecnologia que, em cima dos muito mal que fazem, nem sequer pagam impostos.
Os países nórdicos e a Irlanda opõem-se a um sistema de tributação baseado em algo diferente dos “lucros” gerados no território. Só aceitariam um tal modelo se fosse adotado a nível global (podem esperar sentados). A Alemanha também se pôs de fora temendo que o modelo de tributação proposto pela França espantasse a tecnologia das terras teutónicas. Agora está em cima da mesa uma solução pífia de tributação apenas da publicidade, que pode incomodar um pouco a Google ou a Facebook, mas que deixa a rir a Amazon ou a Apple.
Temo bem que o sonho utópico de Tim Berners-Lee esteja em risco e que não haja políticos com coragem para enfrentar o monstro.
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