Até à crise de 2008/2009 vivíamos num mundo razoavelmente explicado para usar a expressão do meu querido poeta Rainer Maria Rilke.
A coisa era assim:
Existia algures uma taxa de desemprego neutral e uma taxa de juro neutral. Há quem prefira chamar-lhes taxas “naturais”, mas o termo neutral parece-me mais adequado.
A taxa de desemprego neutral é aquela em que a economia não sofre pressões inflacionistas ou deflacionistas – a inflação anda à roda dos 2 % e os salários nominais sobem um pouco mais dependendo da evolução da produtividade.
A taxa de juro neutral é aquela para a qual o nível da poupança desejada pelos aforradores é igual ao investimento almejado pelos investidores.
Se por qualquer razão (por exemplo, um choque externo) a economia se afasta do desemprego neutral, entra em gap, positivo ou negativo, e a política monetária manipula a taxa de juro de modo a que oferta e procura se equilibrem de novo num estado de desemprego neutral.
Isto é tão simples que, visto retrospetivamente, até aparece um bocado tonto.
Contudo, por incrível que pareça, o modelo funcionou bem desde o início dos anos 80 até á grande recessão de 2008/2009.
Ao longo desses mais ou menos 30 anos ocorreram recessões, mas foram todas curtas e de pouca profundidade – nada que a política monetária não resolvesse em duas penadas.
Até que veio 2008/2009.
O mundo teve a felicidade de ter, nessa ocasião, à frente da Reserva Federal um homem invulgar – Ben Bernanke.
Ben Bernanke é não só um académico notável, professor em Princeton (a Universidade que acolheu Albert Einstein quando este teve de fugir do rancor nazi) como, para nossa sorte, era talvez o maior especialista vivo na Grande Depressão 1929/1933.
Ainda na incarnação de académico Ben Bernanke era particularmente vocal em relação à suposta incompetência dos gestores do Banco do Japão país que entrou em deflação crónica no final dos anos 80 e de lá, verdadeiramente, nunca mais saiu. Chegou a afirmar que, se pudesse, demitiria o governador do Banco do Japão caso este não conseguisse colocar a inflação em 3%.
Contudo, como muitas vezes acontece, falar ex-cátedra é muito mais fácil do que tomar decisões no mundo real.
Ben Bernanke, então na qualidade de presidente da FED, fez um trabalho brilhante na gestão da crise de 2008/2009 mas talvez já se tenha arrependido do que disse sobre o Banco do Japão.
A verdade é que, também Ben Bernanke, à frente da FED não foi capaz de domar o bicho da inflação quando ela imbicou para baixo – descê-la quando está alta parece relativamente fácil, já puxar para cima quando está baixa parece ser outra conversa, muito, muito mais difícil.
Vem isto a propósito da recente mudança de orientação dos principais bancos centrais do mundo, nomeadamente a FED e o BCE.
Ao longo de 2018 os banqueiros centrais diziam-nos que a “normalização” da política monetária seria um processo irreversível. Na prática, isso significava para os Estados Unidos continuar a aumentar as taxas de juro (estavam “prometidos” três aumento em 2019) e encolher o balanço da FED (vender parte dos títulos que tinham sido comprados nos tempos da crise). Para o BCE, que estava um pouco mais atrasado no processo, significaria começar a aumentar as taxas de juro em 2019 e começar a encolher o balanço lá para 2020.
No entanto, em poucos meses tudo mudou.
O discurso agora na Europa é: aumentos das taxas de juro nunca antes de 2020 e encolher o balanço, sabe Deus! Nos Estados Unidos os aumentos de taxas de juro previstos para 2019 foram para a conta dos esquecidos e até já há quem especule que as taxas em vez de subir, imagine-se, podem descer. Quanto ao balanço, vamos ver! A seu tempo!
Claro que há mais que razões para esta mudança de curso. As notícias que chegam da China não são boas (crescimento económico em queda), o risco de uma guerra comercial entre a China e os Estados Unidos não é negligenciável, o Brexit ainda pode correr mal ou muito mal, na zona euro o arrefecimento económico é evidente, etc.
Talvez, face às circunstâncias, os grandes bancos centrais do mundo não pudessem fazer outra coisa.
No entanto, não podemos absolver os bancos centrais do pecado da hubris. Os sinais de que poderia ser necessário mudar o discurso não são de agora, eram visíveis há muito – se era para mudar o rumo (e eu tenho algumas dúvidas sobre isso), deveria ter acontecido mais cedo.
Este entrar de leão e sair de sendeiro por parte dos bancos centrais (independentemente da mudança de rumo ser ou não correta – repito, é discutível!) vai ter custos enormes.
O maior ativo de um banco central é a credibilidade. Habituámo-nos a pensar que os banqueiros centrais, porque são funcionários de elite, são mais credíveis que os políticos. Quando um político diz hoje uma coisa, outra diferente amanhã, para depois fazer algo diferente das duas primeiras, já não nos indignamos, de alguma forma assumimos que faz parte da “profissão”.
Contudo, em relação aos banqueiros centrais tínhamos justificadamente expetativas mais altas – a palavra de um banqueiro central vale mais que uma escritura. Lembrar que Mario Draghi pode ter salvo o euro com apenas três palavras, o famoso “whatever it takes” pronunciado em Londres no verão de 2012.
Mas de onde veio isto? Como foi possível um erro de perspetiva tão grande?
Naturalmente que isso não tem que ver com o equipamento intelectual dos banqueiros centrais – estamos a falar de alguns dos melhores cérebros do planeta. Não foi seguramente por falta de massa cinzenta. Pode ter sido simplesmente entusiasmo excessivo e, no caso de Mario Draghi, uma imensa vontade de não deixar o cargo sem iniciar o processo de “normalização” da política monetária. Como ele gostaria de deixar o cargo com as coisas a voltar ao “normal”!
Talvez!...
Mas há outra explicação mais perturbante. Porventura, nós (refiro-me aos economistas profissionais) não percebemos ainda como funciona o mecanismo inflacionista.
Como diria Karl Popper, o grande filósofo liberal: “pensámos que sabíamos, não sabíamos que pensávamos”.
Não há inqueritos válidos.