JOSÉ FIGUEIREDO

O crescimento da desigualdade, uma nova perspetiva

Enquanto economista e também cidadão o que mais me preocupa nas sociedades de capitalismo avançado é o aumento das desigualdades ao nível dos rendimentos, da riqueza e das oportunidades.

Esse movimento que tende a fazer os mais ricos cada vez mais ricos e os mais pobres cada vez mais pobres vem desde os anos oitenta do século passado, mas acelerou desde o início do presente milénio.

Ainda não sabemos exatamente o que provoca e alimenta esta injustiça crescente, mas conseguimos, de forma não exaustiva, elencar um par de suspeitos: a globalização, a tecnologia, a emergência da gig economy (UBER e quejandos), a perda de representatividade e poder negocial dos sindicatos, etc.

O curioso é que um estudo recente da McKinsey procura mostrar que, embora os suspeitos mais óbvios tenham culpas no cartório, talvez até nem sejam os maiores responsáveis.

Um primeiro aspeto que, segundo a McKinsey, temos de ter em conta é a alteração constante da composição da economia. Naturalmente que se os setores mais capital intensivos ganham peso na geração do rendimento nacional, é inevitável que a fatia do bolo que vai para o trabalho fique mais pequena. Por exemplo, o crescimento do peso do setor imobiliário que antecedeu a crise de 2008/2009 pode ter contribuído para reforçar o peso do capital à custa do trabalho.

Mas, serão outros fatores, de ordem mais geral, que poderão estar a alargar o desequilíbrio.

Um deles pode ter sido o superciclo de algumas matérias primas. O crescimento da China provocou uma valorização muito forte do preço de certas matérias primas, nomeadamente minérios (ferro, cobre, etc.) que fez explodir os lucros das empresas mineiras. O mesmo aconteceu em alguns setores agrícolas.

Outro contributo importante pode ter vindo de algumas indústrias propensas a grandes variações cíclicas na geração de lucros (as linhas aéreas são um bom exemplo).

O segundo contribuinte da lista da McKinsey será a alteração profunda nos padrões de investimento. O investimento hoje não tem nada que ver com o investimento de há um par de décadas. Atualmente o investimento tem uma componente cada vez maior de propriedade intelectual (intangíveis) e de tecnologia a nível de computação e automatização.

Isto tem dois efeitos dramáticos sobre a composição do rendimento. Desde logo o investimento dos nossos dias é amortizado muito mais rapidamente. Mais depreciações deixam menos espaço para remunerar outros fatores nomeadamente o trabalho. Depois, pelo menos em certos setores, pode ser económico substituir trabalho por capital diminuindo a quota do trabalho na geração de rendimento.

Outra novidade que pode estar a encolher a fatia do trabalho é a emergência das empresas superestrelas, nomeadamente os grandes nomes da tecnologia: Facebook, Amazon, Google, etc. que são monopólios naturais, tendem a gerar lucros anormais e, com isso, aumentar a quota do capital na contabilidade do rendimento nacional.

Segundo a McKinsey, em termos de contribuintes para o encolhimento da fatia do trabalho, só em quinto lugar viria o fator de que nos lembramos provavelmente em primeiro lugar, ou seja, a globalização e a perda de poder negocial e representatividade dos sindicatos.

Que pensar disto?

Desde logo alguma cautela com a proveniência. A McKinsey não é propriamente uma entidade isenta – é uma companhia inserida nos mais altos círculos do capitalismo internacional e está, obviamente, desse lado em termos ideológicos. Desvalorizar o papel da perda de força do movimento sindical dá jeito!

Depois os dados recolhidos pela McKinsey são apenas da economia americana. Não é garantido que, por exemplo, na Europa as coisas sejam necessariamente similares.

Em todo o caso, seria estulto ignorar os achamentos da McKinsey.

Em relação ao primeiro – o superciclo das matérias primas e os ciclos longos de alguns setores de atividade – a boa notícia é que são reversíveis. De certa forma, a reversão já está a acontecer na área dos minérios e nas matérias primas agrícolas com o arrefecimento da economia da China.

Já os outros dois fatores: o crescimento das depreciações devido à alteração da composição do investimento e o efeito das empresas superestrelas estão para ficar.

Em relação ao tema das depreciações do capital há pouco a fazer. Se alguma tendência podemos ver para o futuro é o aumento da intensidade tecnológica e um cada vez maior peso de intangíveis, nomeadamente, propriedade intelectual, na composição do investimento.

Já em relação ao papel das empresas superestrelas depende completamente das autoridades públicas resolver o problema. Dediquei uma longa série de crónicas aos problemas gravíssimos das gigantes da tecnologia na economia e na qualidade da democracia, que já deveriam ter levado as autoridades públicas a tomar medidas e medidas fortes nesta área. Infelizmente temos visto muito menos do que seria desejável e, o pouco que se viu, foi quase exclusivamente na Europa – no resto do mundo vimos pouco mais que nada!

Significa isto que, se excluirmos aquilo que é cíclico e haverá de reverter e aquilo que depende de políticas públicas, fica o fator da alteração da composição do investimento e o crescimento do peso das depreciações como componente estrutural que é mais difícil de lidar.

A outra ameaça, que por hoje pesa pouco mas vai aumentar drasticamente no futuro, é a robotização e a eliminação de postos de trabalho, no limite varrer profissões por inteiro do mapa da sociedade.

Não restam dúvidas que as tendências do mundo moderno favorecem o capital mas, justamente por isso, é que precisamos de políticas públicas – deixar andar não é solução, significa cada vez mais raiva dos que ficam para trás, mais radicalismo e polarização política, significam Brexit, Trump, Salvinni, Orban e outros que esperam na sombras por uma oportunidade.

Por vezes fala-se da Suécia como um contraexemplo, ou seja, como um país onde as políticas públicas são efetivas, onde a desigualdade, embora esteja a crescer, é apesar de tudo menos vincada que em outras geografias e, não obstante, a extrema direita valerá atualmente 20% do eleitorado.

Contudo, uma análise mais fina mostra que na base do crescimento da extrema direita sueca estão fatores no essencial similares aos que alimentaram a polarização e a radicalização políticas noutras paragens. Também na Suécia são fatores económicos que estão na base do ascenso da extrema direita.

Talvez um dia destes valha a pena analisar o caso da Suécia.

 

Data de introdução: 2019-08-16



















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