HENRIQUE RODRIGUES

Antivírus

1 - Escrevo no dia em que foi oficialmente reconhecida a existência de dois doentes portugueses infectados pelo Covid 19, internados nos hospitais do Porto.

Não vale a pena repetir os tópicos que têm ocupado com quase exclusividade o debate público, designadamente na imprensa, envolvendo as autoridades de saúde, os membros do Governo e, como sempre, o próprio Presidente da República.

Percebe-se a insistência, porque se percebe igualmente a apreensão com que vimos assistindo à velocidade de propagação do vírus, a nível mundial, sem se deter em fronteiras, de par com os efeitos devastadores que a contaminação traz consigo para os doentes.

É certo que as autoridades têm procurado esbater o fundado receio da população, assinalando que, apesar da facilidade de propagação – e, em consequência, da previsão da multiplicação de infectados -, a maioria dos casos de doença terá sintomatologia discreta e a percentagem de mortalidade andará “apenas” pelos 3%.

Até aqui, tudo bem …

Ponto é que as palavras dos responsáveis tenham o condão de abrandar o receio e sejam capazes de evitar o pânico.

(Ainda hoje, em crónica no “Público”, Ricardo Cabral escrevia que “As pessoas não devem estar alarmadas. Mas o Governo e as autoridades devem estar.”)

Mas, voltando ao início, e ao propósito de fugir das declinações dos mesmos aspectos tratados pela generalidade dos comentadores e dos políticos, o que me tem causado engulhos é o facto de, para desvalorizarem o risco, quase todos os que têm opinado no espaço público referirem que são normalmente as pessoas que têm mais de 65 anos e padecem de outros males que têm uma maior probabilidade de morrer.

Isto é normalmente dito como uma vantagem, uma característica positiva – dentro do mal -, associada a este particular vírus, ao contrário de epidemias anteriores, causadas por outros agentes.

A média de mortalidade é de 3% - dizem – mas na população mais idosa, e com o que chamam comorbilidades, é de 15%.

O que significa que essa percentagem será menor do que 3% nas pessoas mais novas, assim se procurando tranquilizar as novas gerações quando à escala do risco.

 

2 – Não se questiona a preferência do vírus pelos mais velhos.

Como diz a fórmula popular, “morrer por morrer, que morra o meu Pai, que é mais velho.”

Concordo com a fórmula: nenhum filho devia poder morrer estando os seus Pais vivos.

Mas o ponto não é esse.

O que custa é a desvalorização implícita da velhice que a formulação geral das características epidemiológicas sugere, na linha do que vem sendo o olhar destes novos tempos sobre a geração dos mais velhos.

(A linha que se reconhece no diagnóstico do deputado Carlos Peixoto, durante o Governo da troika, que denominou essa geração como a “peste grisalha” – estranha premonição …

Referia-se ao facto de o sistema de protecção social em vigor no nosso País ser, na versão desse parlamentar, muito generoso, designadamente em matéria de pensões de reforma, assim “confiscando” os mais velhos os recursos que deveriam ser afectos ao apoio às gerações mais novas.

Ora, não há dúvida de que os velhos ficam caros ao sistema de saúde e a sua morte aliviaria o sistema de Segurança Social dos encargos com pensões.

Mas queremos que seja essa impiedade a modelar os dias que vivemos?)

O que se teme é que, num contexto de escassez de recursos hospitalares, que não permita acudir ao mesmo tempo a um velho e a um novo, esse entendimento interiorizado quanto à hierarquização das prioridades escolha invariavelmente para o sacrifício o mais velho.

Como já se vai fazendo noutros contextos …

Ainda agora, a propósito do debate, no Parlamento e fora dele, a propósito da descriminalização da eutanásia, havia um ponto em que todos estavam de acordo: o valor insubstituível da vida humana.

De qualquer vida humana – criança, jovem, adulto ou velho, homem ou mulher… 

Do que tenho visto e lido, tem fugido desse alinhamento uma personalidade: o ex-Director-Geral de Saúde, Constantino Sakellarides, a quem exclusivamente ouvi o que deveria parecer óbvio: se são os mais velhos e doentes que estão expostos ao maior risco, é a eles que as autoridades de saúde devem proteger em primeira linha – e assim fazer diminuir a percentagem global, com vantagem para todos.

Não é essa a percepção do discurso dominante.

 

3 – Essa prioridade – ou falta dela – diz-me directamente respeito; e será talvez por isso que sou mais sensível ao tema.

Caibo já nessa moldura.

A “peste” é a doença.

E não é “grisalha”.

 

Henrique Rodrigues – Presidente do Centro Social de Ermesinde

    

 

Data de introdução: 2020-03-05



















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