JOSÉ FIGUEIREDO, ECONOMISTA

Não há trade-off entre saúde e economia, tratar da primeira é tratar da segunda

Como afirmei num texto anterior, o tempo da grande sintonia vai durar pouco.

Aos poucos vamos vendo emergir uma espécie de trade-off entre saúde e economia, ou seja, dizer que o que estamos a fazer em nome da saúde pode ter consequências económicas tão graves que o remédio é pior que a cura.

Diria que os argumentos sobre o putativo trade-off são de três tipos: o imbecil, a lógica macabra e o insidioso.

Os imbecis são, por exemplo, Jair Bolsonaro ou Donald Trump e não perderia um segundo com tais criaturas.

A lógica macabra reza assim: esta doença mata velhos. Se a estratégia de contenção vai arruinar a economia e com ela a vida de milhões de famílias, a morte de umas centenas de milhar de idosos pode ser um dano colateral suportável. Macabro, mas absolutamente lógico.

Quem sabe, este é um sinal da mãe natureza que nos está a dizer que prolongar artificialmente a vida é antinatural e que, um dia, pagaremos por isso.

Não consigo desmontar o argumento em termos lógicos, contudo, é tão sinistro que não me perturba a minha escassez argumentativa.

É do insidioso que tenho mais medo.

Hoje o FT (está a fazer um trabalho notável sobre a covi19) comentava a intervenção de um representante da família Wallenberg, uma das famílias mais ricas e mais influentes da Europa.

Basicamente o que diz a criatura é que não estaremos a dar à economia o peso suficiente no equilíbrio com as medidas de contenção e que arriscamos um breakdown social dentro de pouco tempo.

O risco do breakdown é real e disso, aliás, falei num dos meus textos anteriores.

Mas faz sentido colocar a questão nestes termos? Dito doutro modo: existe realmente um trade-off entre saúde e economia? Não teria sido melhor não ter ido tão longe nas medidas de contenção, ainda que à custa de alguns “danos colaterais”, para salvaguarda de um mínimo de atividade económica?

Colocar a questão nestes termos não faz, do meu ponto de vista, qualquer sentido.

Obviamente não tenho (felizmente) qualquer contrafactual para apresentar.

Contudo, não é difícil de imaginar onde nos teria levado uma tal estratégia. Em UK foi esse o caminho inicialmente escolhido apenas para depois fazer uma volta de 180 graus.

Mesmo com medidas de contenção duríssimas sabemos como estão os hospitais em Itália e em Espanha e como estarão em breve noutras geografias, Portugal incluído. Em US, porventura, em muitas jurisdições o estado de caos hospitalar estará instalado em breve.

Sem as medidas de contenção o caos teria chegado mais cedo e numa dose muito maior.

A economia teria parado de qualquer maneira. Perante uma vaga de mortes em larga escala, as pessoas teriam recusado voltar ao trabalho mesmo que escritórios e fábricas continuassem, em teoria, abertos. Os restaurantes deixariam de ter clientes de qualquer forma e as viagens teriam parado de qualquer maneira.

Teríamos a mesma paragem com um bónus: a tremenda desconfiança das pessoas em relação às autoridades constituídas.

A dissolução social que eu temo (parece que os Wallenberg também) aconteceria mais cedo e numa versão ainda mais dramática.

Não há trade-off entre saúde e economia - tratar da primeira é tratar da segunda.

E já que falamos de tratar da economia circulam por aí um par de disparates que vale a pena comentar.

Um deles é o plano Marshall, o outro são as coronabonds.

Não vejo que diabo possa ter o plano Marshall a ver com a situação que estamos a viver.

O plano Marshall fez sentido quando os Estados Unidos, que tinham ficado incólumes à guerra, perceberam que era do seu interesse promover a reconstrução de uma Europa destruída. A raiz do plano Marshall era uma situação assimétrica em que a reconstrução da Europa era do interesse de todos, dos que estavam prósperos e dos que estavam arruinados.

Esta crise vai atingir todos embora, como sempre, em graus diferentes. Não estou a ver quem fique incólume desta vez e tenha interesse em ajudar à recuperação dos outros.

Os coronabonds são outra ideia sem tração.

Os países que estão a promover os coronabonds (Portugal incluído) podem esperar sentados - os países do centro e do norte da Europa simplesmente não vão permitir.

O que parece viável (vamos ver) é utilizar o potencial do sistema de estabilidade europeu para facilitar o financiamento dos países que eventualmente fiquem sem acesso (ou com acesso proibitivo) ao financiamento nos mercados.

Mais – os que esperam incondicionalidade no aceso ao MEE, podem tirar o cavalo da chuva. O que daí vier será condicional, troika a la mode.

Mas nem é tanto por isso que esta conversa dos coronabonds me parece pura estultícia.

Do que a Europa precisa não é de soluções de dívida.

Vamos ter muitos países – Itália, Espanha, Portugal, França, etc. – onde os deficits públicos podem chegar aos níveis do tempo da crise de dívida soberana ou pior.

Não é impossível que muitos países da zona euro passem substancialmente a barreira dos 100% de dívida sobre PIB (atualmente são só três – Grécia, Itália e Portugal) em 2020 ou em 2021.

O que faria sentido seria preparar (como se fez em Bretton Woods em 1944) um sistema monetário para lidar com esses níveis de dívida nunca vistos em tempo de paz, por um lado, e, por outro, ir pensando em como monetizar uma parte dessa dívida usando (com regras, obviamente) o poder soberano dos bancos centrais e do BCE.

Quem pagou as dívidas da segunda guerra mundial (a guerra foi financiada, no essencial, com dívida – não havia simplesmente base de impostos) foi a santa inflação.

Não tenho a certeza que a santa venha em nosso auxílio desta vez. É melhor ir pensando noutra solução!

Mas como diz a cantiga, há sempre uma candeia mesmo na maior desgraça.

Hoje o FT publica um texto de Mario Draghi onde está tudo dito. Isto é um líder.

 

Data de introdução: 2020-03-26



















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