1. Roubo a um soneto de Alexandre O’Neill, musicado e cantado por José Mário Branco, e que transcrevo de seguida, o título desta crónica, que me parece muito adequado ao estado de espírito colectivo destes tempos negros que vivemos:
“Perfilados de medo, agradecemos
O medo que nos salva da loucura.
Decisão e coragem valem menos
E a vida sem viver é mais segura.
Aventureiros já sem aventura,
Perfilados de medo combatemos
Irónicos fantasmas à procura
Do que não fomos, do que não seremos.
Perfilados de medo, sem mais voz,
O coração nos dentes oprimido,
Os loucos, os fantasmas somos nós.
Rebanho pelo medo perseguido,
Já vivemos tão juntos e tão sós
Que da vida perdemos o sentido...”
Há concretamente um verso, o último verso do primeiro quarteto, cuja força retrata bem o risco que corremos hoje de, em nome da eficácia sanitária, e da segurança que o confinamento aparentemente traz consigo, podermos deixar pelo caminho alguns dos direitos fundamentais restituídos pela Revolução de Abril, há uma escassa semana festejada: “a vida sem viver é mais segura”.
Com efeito, é …
Mas a vida, sem viver, é vida ainda?
2 – Não penso que o Governo tenha andado mal na forma como tem gerido esta crise inédita, e que fractura todo o nosso modo de vida, não sabemos bem até quando …
As medidas têm sido adequadas e proporcionais, calibrando bem os valores da liberdade e da segurança, e os resultados do “milagre” português são a evidência do sucesso desse equilíbrio.
E não subsistem dúvidas de que o fecho do País, e o confinamento, em data mais precoce do que o que sucedeu noutras partes da Europa e do Mundo, são a primeira explicação desse “milagre” – como lhe chamou o Presidente da República.
Falta a segunda parte do “milagre” - que consiste em não permitir que o Governo possa ceder à tentação de, para consolidar e melhorar os resultados sanitários, deixar de ponderar na justa proporção o limite às políticas eficazes: as liberdades civis e os direitos fundamentais.
Nessa perspectiva, os últimos dias deixaram-me intranquilo.
A primeira tentação, que esteve perto de vingar, refere-se ao confinamento a que muitos queriam continuar a sujeitar os mais velhos, sem fim à vista; a própria Presidente da Comissão Europeia, Ursula Van der Layden, queria os mais velhos fechados em casa, ou nos lares, sem contacto com familiares e sem possibilidade de vida própria e autónoma, até pelo menos ao fim do ano.
E por cá muitos comungaram na sentença.
(Sempre por boas razões, para os proteger, ou “por bem” – como ironizava a Rainha D. Filipa de Lencastre, ao mandar pintar o tecto de um salão do Palácio Real de Sintra, onde topara com o marido, o Rei D. João I, abraçado a uma dama do Paço, com dezenas de pegas, trazendo no bico a epígrafe “por bem” – a mesma desculpa esfarrapada que o Rei lhe dera para explicar o abraço à dama, quando apanhado em flagrante.)
Acabou por não ser consagrada essa excepção, de limitar aos mais velhos o afastamento da vida civil e familiar – menos por convicção própria, mas mais pela onda de repúdio que suscitou, desde a APRe! a Manuel Alegre, a que o constitucionalista Jorge Reis Novais conferiu o selo de credibilidade jurídica, concluindo pela inconstitucionalidade da medida, por violar o princípio da igualdade e representar uma discriminação em função da idade, expressamente proibida pela Constituição de Abril.
3 – Foi aqui que António Costa falhou, ao desvalorizar – enquanto jurista, condição que expressamente alegou – os comandos e os valores da Constituição como limite material do seu poder na contenção da pandemia.
“Diga a Constituição o que disser”, terá de ser como eu digo – foi aproximadamente a infeliz fórmula que usou.
Parecia Pedro Passos Coelho, e a sua displicência perante a Constituição – que lhe valeu vários chumbos do Orçamento pelo Tribunal Constitucional, como é oportuno lembrar; tornando claro que nenhum Governo, por maior ou menor legitimidade eleitoral que possua, pode dispor de poderes ilimitados.
Pelo contrário, andou bem aqui o Presidente da República, ao lembrar, a propósito da comemoração do 25 de Abril no Parlamento, que, sendo certo que o Governo tem sempre que sentir os freios e contrapesos institucionais que limitam o seu poder, essa exigência á ainda maior em tempo de excepção, em que naturalmente os executivos tendem a exorbitar o alcance das suas competências – sempre por bem, naturalmente, como as pegas de D. João I.
4 – Custou-me particularmente não descer, como habitualmente faço, da ex- PIDE-DGS, no Porto, até à Avenida dos Aliados, com um cravo na lapela, na manifestação que celebra a reconquista da liberdade.
E recordo com saudade a primeira manifestação do 1º de Maio no Porto, depois da liberdade, ocupando toda a Baixa – a maior manifestação a que assisti.
É também com nostalgia que lembro as manifestações do 1º de Maio em que participei, ainda antes de 1974.
Nessa medida, compreendo a vontade de a CGTP querer manter a tradição de festejar o 1º de Maio na rua – restituindo, embora brevemente, à rua o papel do espaço público na vida colectiva, por contraponto simbólico ao deserto em que o dever de confinamento transformou cidades, vilas e aldeias.
Mas aqui já andou bem e mal o Primeiro-Ministro:
Bem, ao ter percebido que a abertura da exepção para a CGTP lhe retirava margem para não estabelecer idêntica possibilidade à peregrinação de 13 de Maio em Fátima – o que veio a suceder, pela voz da Ministra da Saúde.
Mal, por ter inicialmente afastado essa possibilidade, mesmo depois de advertido por todos os constitucionalistas de que o estado de calamidade, ao contrário do estado de excepção, não permitia nunca limitar a liberdade religiosa – consagrada na Constituição como direito fundamental.
5 – O que considero mais chocante – para além das mortes em si próprias, evidentemente -, de entre os sinistros efeitos desta pandemia, é a solidão absoluta em que se morre, sem a presença apaziguadora de um familiar.
E também a limitação da presença, mesmo de familiares próximos, nos funerais, quer de pessoas falecidas por Covid 19, quer por outras razões, que vigorou durante o estado de emergência
António Costa percebeu a desumanidade desta restrição, explicando, em entrevista à RTP, com uma sinceridade que parecia verdadeira, que, a partir do início do estado de calamidade, essa restrição deixa de existir relativamente a familiares directos, impondo essa vontade às autarquias titulares dos cemitérios.
Disse também o Primeiro-Ministro, na mesma entrevista, que não se importa de recuar, na gestão desta crise, sempre que lhe parecer necessário.
Começou bem, ao começar por aqui …
Henrique Rodrigues – Presidente do Centro Social de Ermesinde
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