1 - “É na velhice que o amor
resplandece. Abstrai a flama
do corpo, compenetrado
até se cumprir em alma.
A partir dela, o que vê
também sobe. E, aí, ganha
luminescência, talvez
forma nítida de graça
e nostalgia a reter
sua transparente mágoa.
Plena, então, rompe a velhice
os selos da inteligência.
A dos afectos, a abrir-se,
dá com a clara surpresa
de sumirem-se limites
por onde as imagens entram
e se amam mútuas. Felizes
como o arroubo que as sustenta.”
Fui buscar a Fernando Echevarría, poeta com 91 anos feitos, estes versos que integram o seu livro, publicado em 2018, “Via Analítica”.
2 – Tenho ainda uma ideia muito nítida da reportagem de televisão que nos deu conta da primeira visita a Portugal de Luís Sepúlveda, escritor chileno que, exilado da ditadura de Pinochet, tinha vindo ao nosso País cheirar o perfume de Abril, pouco depois da Revolução, como tantos outros artistas e escritores, de que é também exemplo o último Prémio Pessoa, Chico Buarque de Holanda.
Na altura, havia ainda fronteiras, e Luís Sepúlveda teve que percorrer esse viático, para entrar em Portugal.
Na fronteira, um polícia, ou um militar – como então se usava -, confrontado com o nome constante do passaporte, fez um compasso de espera: que Luís Sepúlveda, lembrado da experiência sinistra da polícia e da tropa no seu País, acolheu com algum temor.
Para logo verificar que a causa do compasso de espera da autoridade aduaneira não era motivado pelo seu currículo de revolucionário político; mas decorria antes de ter reconhecido o escritor, perguntando-lhe se o Luís Sepúlveda que tinha à sua frente era o escritor que tinha escrito “O Velho Que Lia Romances de Amor”.
Sepúlveda, que tinha das chamadas “autoridades” a ideia de que o que liam – e muitas vezes tresliam - eram apenas ordens de serviço ou normas de execução permanente, ficou perplexo com a noção, então apreendida empiricamente, de que, no Portugal renovado, para além dos velhos, até os polícias, ou os soldados, liam romances de amor.
Luís Sepúlveda morreu de COVID-19, após uma longa luta contra o vírus, tendo-se-lhe manifestado a doença após mais uma vinda a Portugal, ao Festival Correntes de Escrita, na Póvoa do Varzim, que costumava frequentar.
E morreu num hospital das Astúrias, Região espanhola onde veio viver após se ter exilado do Chile.
3 – Lembrei-me de Fernando Echevarría, para introduzir a crónica, por três razões:
Em primeiro lugar, por Echevarría, sendo embora um poeta português, ter nascido na Cantábria, região do Norte de Espanha vizinha das Astúrias.
Em segundo lugar, por, aos 90 anos, para além de permanecer como um poeta cimeiro da nossa língua, ser nela quem melhor trata – a meu ver, claro! - o tema da velhice.
E, finalmente, por ser um homem do Porto (“Do outro lado do rio/a esta hora é de noite”).
(Já agora, e a propósito do polissémico termo viático, que usei acima, segue um link, como agora se usa fazer, para um outro poema do mesmo livro de Echevarría,
EMAÚS:
“O que diziam entre si supunha
a emergência de um corpo. Da catástrofe
duma fé, sustentada na figura,
em estado, agora, de feliz saudade.
Ou de aura a deduzir-se dessa dúvida
que, implícita, a conversa levantasse
a via doce e a verdade oculta,
contudo a, devagar, desocultar-se.
Mormente quando essa aura augusta,
ganhando voz e aparecendo imagem,
aos poucos reproduz o que foi sua
paixão de Verbo, veemente carne
a dar-se em sacramento e em altura.
Resplandecendo em sua vera face.”)
4 – Uma das consequências mais visíveis da actual crise mundial, por causa do novo coronavírus, tem que ver com o estatuto dos velhos nas sociedades modernas, vítimas principais da infecção e da mortalidade associada.
Para além das banalidades que é uso debitar a esse propósito – como a de que ao aumento da esperança de vida não corresponde necessariamente uma vida de qualidade, ou de que o mesmo aumento da longevidade introduz uma pressão insustentável nos sistemas de protecção social e prejudica as novas gerações, “espoliadas” pelos seus pais e avós – a marginalização social e do espaço público dos mais velhos, a pretexto da sua “protecção”, entrou, como uma inevitabilidade, no discurso dominante.
Todos esperamos a vitória dos homens contra o vírus.
Mas essa vitória virá acompanhada de uma crise económica e social profunda.
Já algumas vozes, próximas do poder, vêm sugerindo que os cortes das pensões não serão a primeira opção.
Isto significa o quê? Que serão a segunda opção, fazendo regressar os tempos da troika, e esquecendo os compromissos do Primeiro-Ministro?
Acabo com, mais uma vez, Echevarría:
“Apura-se a velhice. A inteligência
radicalmente se reduz a afecto
sem que, por isso, seu exílio venha
reduzir o fulgor do pensamento.”
Henrique Rodrigues (Presidente do Centro Social de Ermesinde)
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