Em tempos dediquei este espaço de opinião à análise dos problemas que a emergência das gigantes da tecnologia está a colocar ás sociedades modernas e, nomeadamente, a ameaça sobre a saúde das democracias liberais.
Os sonhos libertários e utópicos dos criadores da internet, ou seja, um meio de comunicação universal, não hierárquico, livre e democrático, transformaram-se em pesadelo distópico com a emergência das colossais empresas da chamada era tecnológica.
O pesadelo manifesta-se em muitas frentes a começar pela estrutura do mercado de capitais. As GAFA (google, amazon, facebook e apple) valem mais de 25% do índice S&P 500.
Não há nenhum critério, a não ser pura exuberância irracional, que justifique uma tal concentração de riqueza. Por mais lucrativas que sejam essas empresas, para justificar as atuais valorizações, seria necessário pressupor que a situação social e económica, gerada pela pandemia da covid-19, estaria para durar muitos e muitos anos.
Sabemos que, felizmente, não será assim. Ou pela via de vacinas eficientes ou pela via terapêutica, a vida voltará ao normal num futuro não muito distante.
Por outro lado, os resultados das gigantes da tecnologia são rendas cobradas sobre duas coisas: a) - externalidades de rede que geraram monopólios não naturais; b) – incapacidade, até agora, das autoridades políticas, sobretudo nos Estados Unidos, de quebrar a espinha a monopólios artificiais.
As soluções para a situação atual não são simples, mas existem, conforme tentei demonstrar nos meus textos – assim haja coragem política. Que, apesar de tudo, vamos tendo na Europa, mas não existe nos Estados Unidos.
Desde os primeiros textos muita água passou por baixo das pontes, contudo, os meus receios não só não de desvaneceram, como, por outro lado, desenvolvimentos recentes, os vieram agravar e muito.
Uma das linhas de defesa das gigantes da tecnologia é o mito da autorregulação. A ideia é que a sociedade saberá, com o tempo, distinguir o trigo do joio e a própria dinâmica do capitalismo forçará, mais tarde ou mais cedo, o surgimento de concorrência real.
Acontece que um facto recente demonstra à saciedade que, se esperamos pela autorregulação para resolver o problema, é melhor pedir uma cadeira para esperar sentados.
Depois da morte de George Floyd, assassinado, como muitos outros cidadãos de cor negra, às mãos de polícias com demasiada autoridade e pouco controlo, gerou-se um movimento global de repúdio por práticas racistas, nomeadamente ao nível dos poderes policial e judicial.
A Facebook, como de costume, muito mais interessada em gerar receitas publicitárias que em cuidar da higiene dos conteúdos que circulam pela rede social, não teve qualquer cuidado em filtrar as mensagens de ódio e discriminação racial que enxamearam a rede.
Algumas empresas começaram a ficar incomodadas em ver publicidade sua ao lado de mensagens claramente racistas e xenófobas e decidiram cortar o investimento publicitário na Facebook.
Começou com o suspeito do costume, a Unilever, depois uma série de grandes nomes do capitalismo anunciaram a intenção de deixar de investir na rede social.
O melhor da autorregulação a funcionar, certo!? Privá-los do dinheiro deve ser a melhor forma de os vergar, imaginamos.
Só que tudo isto tem de ser lido “cum grano salis”.
Desde logo este suposto “boicote” à Facebook deu imenso jeito a algumas corporações capitalistas em tempo de cortes nos orçamentos publicitários. Poupar em publicidade em tempos difíceis e ainda por cima exibir elevados padrões morais e éticos é seguramente oportuno, talvez a melhor publicidade que se pode fazer nestes tempos conturbados.
Depois, olhando para as contas da Facebook do segundo trimestre verificamos que os eventuais cortes nos grandes orçamentos publicitários das corporações capitalistas na facebook foram menos que picadela de mosquito.
Apesar dos cortes, as receitas publicitárias da Facebook cresceram 10% no segundo trimestre de 2020 comparando com o trimestre homólogo de 2019. Podem boicotar à vontade dirá Marck Zuckerberg…
A coisa não vai lá com autorregulação, só irá com vontade política forte.
Recentemente os CEO das GAFA foram ouvidos no Senado dos Estados Unidos, onde, apesar de tudo, algum consenso bipartidário se vai construindo sobre a necessidade de pôr mão nos excessos das empresas. Esperava-se um massacre sobre os CEO, mas o que finalmente saiu foi uma mão cheia de nada e outra plena de coisa nenhuma. O mais que os CEO ouviram foi uma vaga sugestão de que têm poder a mais…
O que parece claro é que, enquanto perdurar a atual cizânia, política e partidária nos Estados Unidos, enquanto perdurar o clima de guerra cultural promovida por Donald Trump, será muito difícil fazer o que quer que seja neste domínio.
O que nenhum de nós poderia imaginar há um ano é que a tecnologia se pudesse transformar numa arma de arremesso na luta pela predominância global que atualmente se desenvolve entre os EUA e a China.
A coisa começou com o boicote americano à Huawei com base em supostos receios de espionagem por parte da China.
Não sei dizer se os receios relativamente à espionagem são reais ou meros fantasmas, também eles politicamente oportunos.
O que sabemos é que, aos poucos, algumas democracias ocidentais vão aderindo à ideia do boicote. O Reino Unido já decidiu excluir a Huawei do fornecimento de componentes para o sistema 5G a partir de dezembro de 2020, outras estão a ponderar o tema. A França, sempre circunspecta, está a fazer o mesmo, mas sem causar ondas…
Naturalmente que a decisão de muitas democracias ocidentais, mesmo que não acreditem no fantasma do perigo chinês agitado por Donald Trump, será baseada em critérios político-económicos, ou seja, no balanço entre a importância das relações comerciais com a China e a possibilidade de, com base num protecionismo encapotado, promover os campeões europeus que podem substituir a Huawei – a Nokia e a Ericsson.
Seja como for temos o mundo dividido em matéria dos sistemas de telecomunicações do futuro – de um lado os padrões chineses e de outro o que sair da constelação de decisões das democracias ocidentais.
Só que a fúria anti chinesa de Donald Trump parece não ter limites – agora virou-se para os operadores de internet chineses que vão sendo utilizados por cidadãos americanos, nomeadamente a Tik Tok e a WeChat.
Em relação à Tik Tok, Donald Trump concedeu um tempo para que a proprietária da plataforma, a ByteDance, venda as operações americanas ou, não o fazendo, enfrenta o banimento dos Estados Unidos, puro e simples. Em relação à WeChat, que pertence ao gigante chinês Tencent, foi dado um prazo para que as empresas americanas cessem toda e qualquer relação comercial com a plataforma.
Onde isto vai levar parece óbvio – a divisão da internet em dois mundos separados, um no ocidente e outro na esfera de influência chinesa.
Porventura, no mundo ocidental também veremos uma linha de fratura entre a Europa e o mundo de influência americana.
Embora possamos estar a assistir ao fim sonho utópico dos criadores da internet, as divisões que se anunciam podem, por estranho que pareça, ser essenciais para salvar a democracia liberal tal como a conhecemos.
Fica para uma próxima crónica.
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