1 - “Em Novembro inicia-se o retorno
dos mortos mais longínquos. Dos que se iam
esquecendo do seu corpo,
ao mesmo tempo que ver-nos se lhes ria.
Somente estavam longe porque os olhos
com que os amáramos tinham
o volume perdido do seu morno
amor; ou da alegria
com que crescendo fôramos no outono
da sua ausência sapientíssima.
De resto, andavam próximos. Os olmos
quase que só escondiam
andarmos a acordar aos poucos
à vigília.
Mas, em Novembro, os corpos,
com toda a sua transparência, vinham
abrir o lugar; lustrar os copos
que o Natal da mesa alargaria
em paisagens atónitas, que todos
andaríamos vendo. E que nos viam
andar por elas dentro. E pelo próximo
retorno que em Novembro se inicia.”
2 – Volto sempre a Fernando Echevarría, e ao seu livro “Sobre os Mortos”, quando a melancolia que marca este tempo do calendário acompanha o regresso ao nosso círculo dos mortos que amámos.
“Quando à lareira sentamos a família,/ se dissermos “o pai”, como que paira/ uma penumbra ...”
É certo que estão sempre aí: “Como a atmosfera brilha/no sítio em que passaram/ os mortos. Todos os dias/ azáfama e recados/ passam ali. Até a família/ se apressa para o campo.”
Uma das mais fortes impressões que esse livro de poemas causa é a naturalidade com que a presença dos mortos se apresenta como quase física nos espaços que nos são próprios e naturais – principalmente evocando cenários de natureza rural.
Mas, não obstante esse registo de permanência, o certo é que a passagem do tempo é marcada por momentos singulares e rituais, em que parece que os dias ganham outra densidade: assim o Natal, assim as datas do aniversário e da morte; e assim também o Dia-de-Todos-os-Santos, que como que absorveu o Dia dos Fiéis Defuntos.
Esses passos do calendário constituem suportes, ou bordões, que nos acompanham e amparam o percurso dos dias, desta espécie de peregrinação que prosseguimos durante a vida.
É nesses dias que mais profunda e sinceramente viajamos para dentro de nós próprios.
E, na verdade, independentemente das nossas crenças ou convicções, o certo é que o Dia dos Mortos representa um universal reencontro dos mortos com os vivos que os recordam, nos cemitérios de todo o país; reencontro prosseguido nos espaços domésticos que foram o lugar da vida em comum que tiveram; e se foi também tornado por isso uma espécie de regresso às origens de cada um, à terra da infância, a esse tempo primordial em que, como escreveu o Álvaro de Campos, “No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,/ Eu era feliz e ninguém estava morto.”)
3 – Devemos à pandemia que nos assombra os dias não termos tido este ano essa experiência de apaziguamento que constitui o encontro das famílias nos cemitérios e nas casas que foram comuns, para lembrar os mortos.
O agravamento das condições de disseminação do vírus levou o Governo a proibir as deslocações para fora dos concelhos de residência, inviabilizando, em termos práticos, esse movimento nacional de regresso aos lugares da infância e à conversa com os mortos, nas lojas das casas, acompanhando a fermentação do mosto e antecipando a prova do vinho novo.
Tal “recomendação agravada”, como lhe chamou o Presidente da República (para não dizer que não estava na competência do Governo determiná-la), acompanhada de restrições locais, como encerramento de muitos cemitérios, por decisão autárquica, impediram, de facto, a romagem de saudade que bem necessitados estávamos de fazer.
Principalmente este ano.
Já tive ocasião, nestas crónicas mensais que aqui publico, de oportunamente saudar o Governo, e as próprias declarações do Primeiro-Ministro, quando, na primeira fase da pandemia, pretendeu afeiçoar melhor as regras para os funerais, não permitindo que as limitações definidas pelos autarcas responsáveis pelos cemitérios impedissem o acompanhamento pelo menos dos familiares.
Mas, como também já aqui escrevi, se há nota particularmente lúgubre nesta pandemia é a completa solidão em que se morre, num hospital, sem nenhum acompanhamento da família.
Uma morte é, agora, uma estatística.
Mas não é; não pode ser.
Como escreve Echevarría: “E dizem disto que dormimos. Dizem/ que se afastou um barco./ A verdade, contudo, é que, felizes/ partimos pela morte. Que do âmago/ do corpo quente se desprendeu o timbre/ para um destino enigmático.”
4 – Na impossibilidade do reencontro de cada qual com os seus mortos, o Governo resolveu inventar um sucedâneo: o decretamento de um dia de luto nacional, no dia 2 de Novembro, em honra dos mortos, principalmente das vítimas de Covid 19.
Será uma cerimónia minimalista e restrita, na Praça Afonso de Albuquerque, em frente ao Palácio de Belém, nos mesmos moldes da comemoração do 10 de Junho, em que intervirão o Presidente do República, o Presidente da Assembleia da República e o Primeiro-Ministro.
Parece-me pífia a função – e fora de tom a lembrança.
Não estarão presentes os familiares enlutados.
E os mortos não deambulam nos palácios.
“Os mortos aconchegam-se, no outono/ aonde, sendo mais secas,/ as folhas juntam o pródigo tesouro/ da tristeza.”
Henrique Rodrigues (Presidente do Centro Social de Ermesinde)
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