HENRIQUE RODRIGUES

Os velhos

1 – Ao longo dos mais de 15 anos que levo de publicação destas crónicas no Solidariedade, com religiosa periodicidade mensal, creio que é a primeira vez que repito um título; no caso, “Os Velhos”.
Mas não é caso para menos.
Nem sei bem se repito … Não tenho ficheiros onde se conservem as crónicas que vou publicando, para poder conferir …
Mas tenho assim como que uma ressonância, ouço uma espécie de eco: de um título como esse, que já terei porventura escrito, conferindo o tom a uma das crónicas aqui publicadas no passado.
Talvez do tempo do Governo da troika, ou mesmo “além da troika” - quando a exautoração dos velhos, empurrados para fora da ágora, do lugar da cidadania, constituía um tópico do discurso dos neoliberais de então,  então no poder.
Causa de desequilíbrio das contas públicas, expropriação das expectativas e do futuro das novas gerações, insustentabilidade do sistema de protecção social, “peste grisalha”: todos esses ónus, ou “mimos”, lhes foram sendo arremetidos durante esses tempos de resgate.
O estatuto dos mais velhos, e as perspectivas opostas sobre tal estatuto, foi, aliás, um dos temas que marcou as legislativas de 2015.
Ainda recordo o discurso da António Costa, nessa campanha, proclamando que não admitia ter de escolher entre os direitos de sua mãe e os dos seus filhos – todos tendo de ser compatibilizados, como é próprio das sociedades civilizadas. 

2 – São os mais velhos quem principalmente morre de COVID.
Ainda hoje, dia em que escrevo, 7 de Fevereiro, os dados publicados pela DGS assinalam que, em cerca de 14.000 mil mortes por Covid já verificadas em Portugal, cerca de 9.500 são pessoas com mais de 80 anos.
Constitui dado assente desde há muito na comunidade científica que a idade é, por si só, o principal factor de morbilidade grave e de mortalidade nesta doença.
Pareceria uma constatação óbvia que um plano de vacinação, destinado em primeira linha a evitar as mortes, deveria atentar prioritariamente nas maiores vítimas: os mais velhos, tenham ou não  comorbilidades, sejam residentes nos lares ou permaneçam no respectivo domicílio.
Mesmo antes dos profissionais de saúde, das forças de segurança ou dos militares – passe a “blasfémia”.
Estes, que são, em regra, adultos na força da idade, mesmo se infectados, correm um risco estatístico de letalidade incomparavelmente menor do que os seus pais e avós.
A atribuição de prioridade aos mais velhos não foi, como devia ter sido – e seria o critério mais objectivo, de mais linear interpretação e aplicação -, o critério inicial no nosso País, ao invés do que se estabeleceu nos nossos principais parceiros da União Europeia.
Como aqui tenho lembrado, numa primeira fase, havia até quem defendesse que os maiores de 65 anos – salvo se residentes em lares – não deveriam sequer ser vacinados, por as vacinas não serem seguras para pessoas com essa idade.
(Mas já eram seguras para os residentes em lares …!)
Valeram então o Presidente da República e o Primeiro Ministro, ambos repudiando publicamente tal ideia peregrina, salvaguardando o direito à saúde dos mais velhos, principalmente ameaçados, e dando ordens à task force do Plano de Vacinação para corrigir o caminho.
Mas só agora, há poucos dias, no quadro actual da escassez de vacinas, é que o Plano de Vacinação elegeu os maiores de 80 anos para a primeira prioridade, enxertando esse novo grupo no naipe da primeira fase de prioridades em vigor: começaram a ser vacinados no fim da primeira semana de Fevereiro.
E porque a Europa mandou!
Ora, como só tardiamente foram “repescados”, não foi planeada no tempo oportuno a forma eficaz e rápida da sua convocação, como há dias advertia o Presidente da Câmara de Vila Real, lembrando que, principalmente em meios mais desfavorecidos ou despovoados do interior do País, muitos velhos não possuem telemóveis para receberem as mensagens pelas quais serão convocados para a vacinação; ou, tendo-o, o mesmo é comum a mais do que um membro do agregado familiar, não se concluindo da mensagem a quem a mesma é destinada – correndo o risco de faltar à convocação.
A jornalista do “Público”, Teresa de Sousa (que não é suspeita de constituir força de bloqueio), refere, na crónica que hoje publica nesse jornal (“Von der Leyen e a Invencível Armada”), que “ontem (6 de Fevereiro) 90% dos britânicos maiores de 75 anos já estavam vacinados.”
Vale a pena comparar – e não é só o Brexit que explica a diferença.
[Lembro aqui as crónicas que, no início da década de 70 do século passado, o jornalista Artur Portela Filho, recentemente falecido, publicava nos jornais da época, sob a designação de “A Funda”. Creio – tanto quanto a memória evoca – que comentava Artur Portela que a democracia é como a relva; e que a relva dos prados ingleses é mais verde e mais viçosa (como podemos ver nas séries da BBC, na televisão), por ser regada há muitos séculos.]

 3 – As televisões agridem-nos dia após dia – e mesmo várias vezes por dia, numa repetição ‘ad nauseam’ das mesmas imagens e dos mesmos lugares, iguais em todos os canais e a todas as horas  –, com reportagens do interior das enfermarias hospitalares e das unidades de cuidados intensivos.
Trata-se de um desfile de corpos meio despidos, colocados em posições bizarras, desprotegidos, entubados e ligados a uma parafernália de aparelhos e de fios, expostos à curiosidade geral na sua fragilidade, vulnerabilidade e perda de autonomia, aguardando por uma sentença de morte ou por um sopro de vida, inteiramente à mercê do olhar ‘voyeur’ do público – a redundância é intencional.
Com uma sombra a disfarçar o rosto, em regra, é certo – mas os corpos são exibidos sem qualquer véu.
Já não falo da toma de vacinas, cá e no estrangeiro, em que vejo as mesmas caras, há cerca de dois meses, de hora a hora, a deixarem espetar a mesma agulha no mesmo braço, exibindo perante as câmaras o seu minuto de glória mediática, como se artistas secundários fossem desta novela.
Aí, sempre é de sua vontade, ou com o seu consentimento.
Mas os doentes hospitalizados, a quem ninguém perguntou nada, ou que não estão em condições de consentir livremente …!
“Les vieux ne parlent plus”, como cantava Jacques Brel.
Talvez as Ordens dos Médicos e dos Enfermeiros possam pegar neste tema, e virem dizer o que pensam dele.
Tenho para mim que se trata aqui de deontologia mesmo, em sentido próprio – matéria que, ao contrário doutras, não há dúvida que cabe nas competências e atribuições de tais entidades.
Embora possa não ter o aplauso fácil de outras intervenções … e de outras corporações.

 

 

 

 

Data de introdução: 2021-02-12



















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