O mundo do capitalismo avançado vive hoje num paradoxo terrível.
A crise financeira de 2008/2009 obrigou a uma intervenção massiva dos governos através da política orçamental e através da política monetária.
Embora a resposta inicial dos governos à cise financeira de 2008/2009 tenha sido robusta em matéria de estímulo orçamental a verdade é que, em pouco tempo, os decisores de política económica entraram em pânico com o crescimento dos deficits e da dívida pública, retiraram os estímulos demasiado cedo e foi o que se viu – os portugueses que o digam!
Quando estávamos ainda longe de superar as consequências da crise de 2008/2009 caiu-nos em cima a pandemia.
Mais uma vez as respostas da política orçamental e da política monetária foram robustas e, pelo menos até agora, os decisores de política económica não entraram em pânico e o modo geral não é de retirar prematuramente os estímulos orçamentais, pelo contrário, a tendência é de reforço do empurrão fiscal. Nos Estado Unidos, por exemplo, discute-se a possibilidade de um pacote fiscal de 1,9 triliões de dólares.
A política monetária, por seu lado, continua acomodatícia, com taxas de juro em território negativo em várias geografias e em maturidades que julgaríamos impensáveis.
Por exemplo, as taxas de juro alemãs a 30 anos estão em negativo, Portugal emitiu recentemente a 10 anos com juros negativos e até a Grécia tem taxas negativas nas maturidades mais curtas.
Podemos dizer que os governos e os bancos centrais não tinham ou têm alternativa, ou seja, as consequências de não fazer nada seriam de tal modo dramáticas no plano económico e social que nem sequer verificamos a existência de contestação política significativa.
Não é garantido que continue a ser assim. Por exemplo, nos Estados Unidos, o Partido Republicano considera excessivo o pacote fiscal proposto pelo Presidente Joe Biden e é tudo menos garantido que o plano passe no Senado tal como proposto.
O problema está em que, políticas orçamentais e monetárias expansionistas, aparentemente incontornáveis e destinadas a proteger os mais fracos, estão na verdade a aumentar a desigualdade entre ricos e pobres numa escala nunca vista na história.
Quando os bancos centrais inundam o mundo em dinheiro com vista a manter as taxas de juro baixas e sob controlo – o que parece ser uma coisa boa – esperar-se-ia um empurrão para cima nos preços. Tudo o mais igual, mais dinheiro para a mesma quantidade de bens e serviços deveria fazer subir os preços – é o que diz a sabedoria convencional que, em economês, dá pelo nome de teoria quantitativa da moeda.
Claro que já sabíamos que a regra de ouro da teoria quantitativa da moeda não se aplicava sempre de forma perfeita. Mas Milton Friedman, o economista liberal do século passado, gostava de dizer onde quer que visse inflação lhe parecia que o dinheiro estava presente.
A origem monetária da inflação parecia estar bem estabelecida.
No entanto, vamos numa dúzia de anos de inundação das economias em dinheiro criado pelos bancos centrais e inflação, nem vê-la!
Não é fácil explicar o fenómeno. Contudo, há uma pista que parece segura.
É verdade que a inflação, onde a costumamos medir, ou seja, nos preços dos bens de consumo, não está a subir e está até em território negativo em muitas geografias, Portugal, por exemplo.
Mas há um sítio onde os preços estão a subir de uma forma exuberante – os preços dos ativos. As ações das empresas estão em níveis estratosféricos e mesmo o imobiliário tem manifestado uma significativa resiliência em matéria de preços. Por exemplo, em Portugal o preço das casas subiu quase 5% em 2020.
Esta valorização excessiva dos ativos em resultado da política monetária ultra expansionista dos bancos centrais tem vários problemas. Vamos analisar um par deles:
Quem possui os ativos que estão a valorizar são os ricos – os seus balanços estão cada vez mais gordos. Em contrapartida os mais pobres, que não possuem ativos ou têm o tipo de ativos que não valorizam (depósitos bancários, por exemplo) estão a ficar para trás na escala da riqueza
As aplicações minimamente seguras e que rendem alguma coisa são raras. Com tanto dinheiro para aplicar os investidores não têm outro remédio que não seja procurar rendimento em lugares cada vez mais arriscados. As empresas sabem disto e estão a emitir dívida em quantidades colossais e em condições que há apenas alguns anos consideraríamos impensáveis. Não augura nada de bom a médio prazo.
Em função da situação os mercados orientavam-se para tal ou tal tipo de ativos e fugiam de tal ou tal tipo de ativos. Os primeiros subiam, os segundos desciam.
O que vemos hoje é que tudo sobe: ações, obrigações do estado, ouro, dívida corporativa, dívida de qualidade duvidosa, bitcoins, tudo! – os mercados perderam a capacidade para distinguir trigo de joio, não estão a fazer o seu papel.
Aquilo em que supomos que o mercado é melhor que ninguém, ou seja, alocar eficientemente os recursos, simplesmente não está a acontecer.
Estamos um pouco como alguém que tem de escolher entre o fogo e a sertã.
Se retiramos os estímulos vem por aí uma recessão colossal e vão sofrer os mesmo de sempre, os mais frágeis – os que vão ficar sem emprego, as famílias com balanços mais débeis…
Se mantemos os estímulos o fosso entre ricos e pobres não cessa de aumentar, um grande número de empresas vai sobreviver num estado zombie e o que se vê pela frente não é bonito.
Não é fácil quadrar este círculo e não vai ser simples desfazer o nó que estamos a apertar desde 2008/2009.
Contudo, há pelo menos uma conclusão que dou por segura. Se as políticas públicas estão, ainda que por bons motivos, a engordar desmedidamente os balanços dos mais ricos, então, o caso para uma correção dessa distorção por via de outras políticas públicas parece forte. O que uma mão deu, a mesma mão deve levar, pelo menos em parte.
Excluindo os mais ricos, que têm muito a perder, tenho dificuldade em perceber a resistência à tributação da fortuna.
Até estaria disponível para discutir se a tributação deve ser uma vez única, sem exemplo e sem continuidade ou se deve ser uma tributação sistemática e regular como o IRS.
Esse e outros debates valem a pena.
O que tenho dificuldade em entender é como num mundo em que tipicamente um terço da riqueza pertence a 1% da população e os 10% mais ricos detêm 90 % das fortunas, quando muito do crescimento dessas fortunas se deve a efeito colateral e indesejável de políticas públicas, que se fique simplesmente a olhar para o tema sem fazer nada e, pior, sem sequer debater o assunto.
Nos Estados Unidos o tema da tributação da riqueza foi objeto de debate nas eleições presidenciais de final de 2020. Nomeadamente, duas candidatas às primárias democráticas, Elizabeth Warren e Alexandra Ocasio-Cortez, apresentaram propostas de tributação das fortunas. Infelizmente esse ponto não consta na agenda do presidente Joe Biden – a ala mais progressista do partido democrático foi vencida neste particular. Mas não é assunto fechado, nem em US nem no Reino Unido onde o debate continua.
Por cá, no jardim à beira-mar plantado, continuamos a ignorar o assunto…
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