Os últimos dados sobre a inflação nos Estados Unidos (US) e na Europa (UEM) dizem-nos um par de coisas.
Por um lado, a inflação parece estar a acelerar. O último registo nos Estados Unidos saiu em 7,2 %, o valor mais elevado desde fevereiro de 1982. Na zona euro os números são mais modestos, 5%, mas também em máximos de mais de 30 anos.
Por outro lado, verificamos divergências aparentes entre os dois lados do Atlântico.
Em US a inflação nuclear, ou seja, expurgada dos elementos voláteis (energia e comida) está em 5,6%, na UEM está nuns quase inofensivos 2,6%.
Também a situação no mercado de trabalho parece ser substancialmente distinta. Em US a última taxa de desemprego registada foi de 3,9%, na UEM continua superior a 6%. Em US verifica-se uma anormal mobilidade laboral – só em dezembro abandonaram os empregos 4,5 milhões de americanos - na UEM não verificamos nada similar.
Aparentemente o impulso inflacionista é mais poderoso em US com a consequência óbvia de que, por lá, se esperam subidas das taxas de juro mais cedo e mais fortes que na UEM.
Os mercados financeiros já incorporaram a narrativa do surto inflacionista não necessariamente transiente (pode ter vindo para ficar por algum tempo) e, por exemplo, os índices bolsistas estão a cair e as taxas de juro de médio/longo prazo a subir.
O futuro dirá se o atual surto inflacionista é mesmo para ficar. Na verdade, tudo se vai jogar no mercado de trabalho e na capacidade dos trabalhadores para conseguir aumentos significativos de salários nominais.
Nesta matéria, até ver, as realidades americana e europeia são manifestamente distintas.
Em US os salários horários médios estão a crescer quase 5% com crescimentos maiores nos salários mais baixos. Acontece que em muitos setores e regiões há uma manifesta escassez de trabalhadores para os postos de trabalho em aberto. Mesmo com salários a crescer nem sempre é possível preencher as vagas disponíveis.
De onde veio esta súbita escassez de oferta de trabalho?
A força de trabalho em US está a regredir já há alguns anos sem que saibamos exatamente porquê. Na transição do milénio a força de trabalho comparada com a população total andava um pouco acima dos 67%, atualmente regista 62%.
Claro que parte do registo atual tem que ver com a pandemia. Em 2019 o valor estava um pouco acima de 63%, caiu a pique no início de 2020 e, desde então, já recuperou parte das perdas.
Entre confinados, pessoas com medo de ser contaminadas em ambiente laboral e os que têm de cuidar de alguém, a força de trabalho disponível tinha forçosamente de encolher.
Contudo, a tendência estrutural já vinha de antes da pandemia. Foi a junção de forças estruturais com o episódio pandémico que criou em US o mercado de trabalho mais estirado em muitas décadas.
Na Europa não vemos nada similar. Na zona euro as taxas de participação são mais altas (atualmente 73,6%), já recuperaram do trambolhão de 2020 e não observamos nenhuma tendência estrutural para encolher.
Não admira que, ao contrário de US onde se preveem 3 ou 4 subidas das taxas de juro em 2022, na Europa o BCE parece tranquilo, não antecipa nenhuma subida dos juros em 2022 e aposta na normalização do surto inflacionário o mais tardar em 2023.
O curioso aqui é perceber porque observamos dinâmicas tão distintas dos dois lados do Atlântico.
O mercado de trabalho em US sempre foi diferente. A sabedoria convencional diz que em US o mercado é mais liberal, a mobilidade é maior, os apoios sociais são mais curtos em tempo e dimensão e, consequentemente, as taxas de desempregos são estruturalmente mais baixas.
Daí que os liberais concluam que o mercado de trabalho americano é mais eficiente.
Contudo, a suposta superioridade do modelo americano é tudo menos contestável.
Desde logo, a taxa de participação na Europa é bastante mais alta, isto é, o número de pessoas que estão a trabalhar ou a procurar trabalho é maior comparando com a população total.
Se em US a taxa de participação da força laboral fosse igual à da Europa a taxa de desemprego não seria de 3,9%, seria seguramente bem mais alta.
Por outro lado, em US a situação de desemprego, é quase adjacente à marginalidade. E isto tem consequências, por exemplo, a nível de criminalidade. US pode ter uma taxa de desemprego mais baixa, mas tem uma taxa de população presa das mais altas do mundo.
Gastam menos em apoios sociais, mas gastam mais em prisões.
Por outro lado, em US vemos a tendência estrutural para a redução da força laboral.
A explicação benévola é a chegada da idade da reforma para muitos baby boomers.
É verdade, mas não explica tudo. As causas são mais profundas e estão enraizadas no modelo social.
As famílias americanas têm níveis elevados de ansiedade em matéria de saúde. Não admira – a proteção social é muito mais fraca que na Europa. Por outro lado, a fraqueza da resposta pública cria mais situações em que é necessário cuidar de alguém, logo, ausência da força de trabalho.
Depois em US boa parte do sistema de pensões é privado e, consequentemente, é mais fácil a reforma precoce do que em sistemas de base pública onde as regras para reforma antecipada são universais, tendencialmente limitadas e, por vezes, muito penalizadoras.
A própria maior mobilidade dos americanos pode ter aqui efeitos perversos. Com a pandemia e a disseminação do trabalho remoto, muitos trabalhadores mudaram-se para zonas menos populosas, onde as casas são mais baratas e a vida mais tranquila. Naturalmente que nessas zonas a procura de serviços aumentou e a força laboral local não consegue responder.
Finalmente há um outro fator de natureza cultural que, embora não seja exclusivo da América, parece ter aí mais força que noutras geografias.
Em US comunidades digitais com milhões de membros incitam ao abandono do trabalho. Uma cultura anti trabalho está a crescer e a ganhar força entre os trabalhadores, nomeadamente na parte mais baixa da escala de salários.
Em dezembro de 2021 mais de 4,5 milhões de americanos deixaram o trabalho. Obviamente na maior parte dos casos tratava-se de pessoas que já teriam outros empregos – não faltam alternativas por estes dias.
Contudo, uma parte dos abandonos é já o resultado desta cultura de desinteresse por trabalhos rotineiros e mal pagos que não motivam boa parte da potencial força laboral.
Esta é mais uma matéria em que, com todos os seus defeitos, a boa e velha europa mostra que o seu modelo é superior. Longa vida ao modelo europeu.
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