Acontecimentos recentes parecem ter vindicado os que, como este vosso humilde criado, andavam a bradar no deserto alertando para as fragilidades e para os perigos das bitcoins e, em geral, dos ativos digitais.
Em pouco tempo assistimos à queda vertical da bitcoin (mais de 70% desde o final de 2022), à insolvência de uma grande mineradora de cripto-ativos e ao colapso de uma plataforma de negociação, a FTX.
Várias empresas do setor estão a anunciar cortes significativos nos quadros de pessoal no que parece ser uma crise geral de confiança na atividade.
O caso da FTX foi o que concitou mais atenção mediática dado os volumes envolvidos. A plataforma faliu com mais de 10 biliões em dívidas e talvez não mais de 1 bilião em ativos facilmente vendáveis pelo que é possível antecipar que os credores vão encaixar perdas enormes. Dá-se ainda o caso de alguns dos clientes da plataforma serem figuras mediáticas do desporto, da moda ou do mundo do espetáculo.
A questão do milhão de dólares aqui é saber até ponto que esta derrocada no mundo dos cripto-ativos pode contagiar a parte convencional dos sistemas financeiros. Pode um banco sistemicamente relevante ficar em apuros? Ou uma companhia de seguros importante exposta a perdas significativas?
Até ver o risco parece ser mínimo. Aparentemente as interconexões entre os mercados de ativos digitais e o sistema financeiro convencional parecem pouco relevantes e as perdas estarão a ser registadas sobretudo em balanços privados.
A sequência recente de acontecimentos abriu um debate sobre o que fazer relativamente a um mercado que, embora aparentemente sem grande risco de contágio, se transformou em pouco tempo num importante veículo de investimento, onde investidores de retalho aplicam parte das suas poupanças.
Há que reconhecer que a tentação era grande. Durante os confinamentos de 2020 verificou-se uma explosão do investimento de retalho, ou seja, investimentos de valores pequenos ou médios, realizados por pessoas privadas, em geral pouco informadas e com uma propensão grande para seguir as tendências.
O crescimento do investimento de retalho foi potenciado pelo aparecimento de plataformas digitais de negociação, disponíveis em telefones móveis, graficamente muito apelativas, fáceis de utilizar e com custos de transação muito baixos ou mesmo nulos.
A negociação de ativos digitais ficou acessível ao comum dos cidadãos e os ganhos pareciam fáceis. Quem comprou bitcoins na meada de 2020 podia dizer no final de 2022 que por cada euro investido tinha então cinco euros, um ganho de 400% em menos de dois anos.
Hoje o ganho está reduzido praticamente a zero. Todos os que entraram no negócio ao longo de 2021 e 2022 estão a registar perdas que podem ir até 70% do capital investido.
Podemos colocar aqui um tema moral. Porventura, a esmagadora maioria dos investidores de retalho que entraram no negócio não fazia a mínima ideia do que estava a comprar. Será moralmente aceitável que este mercado continue a funcionar de uma forma não regulada, como um mundo sem regras e sem qualquer proteção dos consumidores?
Esta situação abriu um debate onde vemos basicamente dois campos: os que defendem a integração dos ativos digitais no sistema regulatório dos mercados financeiros e os que defendem que isso seria legitimar, dar credibilidade a algo que manifestamente não é comparável a investimentos financeiros em títulos de dívida ou ações de empresas.
Na verdade, não se conhece nenhuma utilidade social aos cripto-ativos. Pode-se dizer que, no limite, podem servir como dinheiro. Em rigor, nem isso.
As bitcoins não são escaláveis, são um desastre ambiental pela energia absurda que consomem na sua criação e, por outro lado, das três funções do dinheiro (unidade de conta, meio de troca e reserva de valor) só a última fica razoavelmente preenchida e, ainda assim, à custa de um enorme risco e volatilidade.
Há quem tente comparar com o ouro, os cripto-ativos seriam uma espécie de ouro digital.
A comparação com o ouro não faz sentido. A esmagadora maioria do ouro produzido no mundo é consumida no fabrico de joalharia e em outras aplicações industriais.
Não encontro nenhum argumento a favor da regulação dos ativos digitais como se fossem investimentos “sérios”.
No entanto, o caso é sério - os ativos digitais podem ser usados para fuga ao fisco, financiamento do terrorismo, violação de sanções internacionais e configuram uma agressão ambiental. Fazer nada não é opção.
O segundo campo do debate, com o qual genericamente concordo, diz-nos que devemos deixar a bolha dos ativos digitais esvaziar mesmo que isso implique perdas significativas para muitos cidadãos incautos.
Se é verdade que os cripto-ativos podem fazer mal à comunidade, trata-se do mesmo tipo de mal dos jogos de sorte e azar. Se alguma regulação é necessária será do mesmo género da que é feita sobre as lotarias ou os casinos.
Ou seja, a regulação dos cripto-ativos deve centrar-se na proteção dos consumidores e na tributação justa de uma atividade perigosa e potencialmente causadora de danos significativos à sociedade.
Nunca será um tema fácil. Os seres humanos têm uma tendência natural para o jogo. Sabemos por infindáveis experiências históricas que o proibicionismo nunca acabou com o jogo, apenas o mudou para sítios que, por clandestinos, são ainda mais perigosos.
Enquadrar e regular é sempre preferível e, afortunadamente, a união europeia está na vanguarda do enquadramento dos ativos digitais. Já foi publicado o documento orientador sobre os mercados de cripto-ativos (MiCA, na sigla inglesa) e teremos em breve legislação concreta sobre o tema. Seria bom que outras geografias se juntassem à Europa neste particular.
Contudo, ainda que a união europeia tenha sucesso no enquadramento, regulação e tributação dos ativos digitais, será apenas uma parte da tarefa.
Se é verdade que os ativos digitais como as bitcoins não serão o dinheiro do futuro, a verdade é que a marcha para o dinheiro digital é inevitável.
O dinheiro digital é um assunto demasiado sério para ser deixado nas mãos de empresários privados com mais ganância do que escrúpulos. O verdadeiro dinheiro digital será criado pelos bancos centrais, sob o poder soberano dos estados e com o escrutínio público das estruturas democráticas.
Felizmente que também no dinheiro digital a europa lidera e o BCE será porventura o banco central mais avançado do mundo neste particular.
A Europa, a velha Europa, não é o corpo decrépito e decadente que os pessimistas e os praticantes de autoflagelação teimam em ver. A Europa está na vanguarda do dinheiro digital, na frente da regulação dos cripto-ativos bem como numa outra área muito importante a que gostaria de voltar um dia destes, a saber, a regulação e controlo dos abusos das gigantes tecnológicas.
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