Volta, meia-volta temos uma crise bancária. A frequência desse tipo de eventos é maior do que se pensa - desde o início do século XIX ocorreram cerca de duas dezenas de crises bancárias, ou seja, em média uma crise a cada dúzia de anos.
A última crise séria foi em 2008/2009 com a falência do Lehman Brothers e as ondas de choque que abalaram depois o sistema bancário em vários países europeus.
Passaram apenas quinze anos e já estamos de novo a braços com turbulência no setor. Mais uma vez as coisas começaram nos Estados Unidos com a falência do Sillicon Valley Bank, as posteriores dificuldades do First Republic, com a onda de choque a deitar abaixo o Credit Suisse, uma vetusta instituição com quase duzentos anos, mas que não resistiu a sucessivos escândalos e a uma debandada da clientela.
Depois de cada crise bancária são introduzidas reformas que visam tornar o sistema mais forte, mais capaz de absorver choques, mais resiliente.
Por exemplo, depois da crise de 2008/2009, os bancos ficaram sujeitos a regras de capital mais exigentes, a níveis de liquidez mais robustos, alavancagem mais curta e supervisão mais apertada.
Contrariamente ao que muitos sugeriam na altura, não foi reintroduzida uma velha regra, que vinha do tempo posterior à grande depressão, que obrigava à separação entre o banco depositário e a banca de investimento, ou seja, evitar a confusão entre os depósitos e o “casino”.
De cada vez que uma reforma bancária é introduzida fica aquela sensação de que “agora é que é”, agora é que o sistema fica à prova de bala de canhão.
Tudo para, volvidos apenas alguns anos, voltarmos ao fado do costume, isto é, falências, corridas aos depósitos e risco de uma crise sistémica.
Porque diabo falharam todas as reformas tentadas até agora? Porque é que, por mais que reguladores, governos, instituições supranacionais se esforcem por dar estabilidade ao sistema, este regressa, mais ano menos ano, a situações de desequilíbrio?
A questão é muito simples. Não se trata de incompetência ou falta de vontade dos agentes envolvidos – o problema é que os bancos, tal como existem atualmente, não são reformáveis, não há como os fazer seguros.
Os bancos atuais são de reserva fracionária, ou seja, têm em dinheiro disponível apenas uma pequena fração dos depósitos. Em tempos normais isso não é um problema porque nunca aparecem todos os clientes, ao mesmo tempo, a levantar o seu dinheiro. Em tempos normais alguns clientes levantam, outros depositam e, mesmo que temporariamente os levantamentos superem os depósitos, existe sempre o recurso ao mercado interbancário ou ao banco central e a coisa rola.
O problema está em que os bancos atuais têm um balanço, por natureza, desequilibrado.
Como passivo têm depósitos que são, quase sempre, uma responsabilidade à vista, ou seja, podem ser exigidos a qualquer momento. Como contrapartida desta responsabilidade os bancos têm ativos (crédito à habitação, crédito às empresas, etc.) que acumulam duas características: são arriscados (podem ser recuperados ou não) e não são líquidos, ou seja, não podem ser facilmente transformados em dinheiro a qualquer momento.
Se muitos clientes, de repente, quiserem levantar os seus depósitos, os bancos não têm como obter instantaneamente dinheiro para tal e abre-se uma crise que começa por ser de liquidez, mas que, muitas vezes, acaba como uma crise de solvência.
Enquanto os bancos mantiverem balanços desequilibrados (responsabilidades à vista e ativos arriscados e ilíquidos) podemos fazer uma, dez ou cem reformas que acabamos sempre no mesmo – um sistema inerentemente instável.
Não há nada a fazer, portanto?
Falso! Existe solução e até é simples. Se é a reserva fracionária que está na base da propensão às crises o que há a fazer é acabar com ela – os bancos deviam ser obrigados a ter em “dinheiro vivo” o equivalente a todos os depósitos, ou seja, mesmo que todos os depositantes corram a levantar os depósitos, os bancos têm dinheiro bastante para os pagar.
Mas o que é “dinheiro vivo” neste contexto? Não é, com certeza, uma montanha de notas e moedas como a caixa-forte do Tio Patinhas – não seria praticável. Dinheiro vivo significa aqui depósitos no banco central ou títulos sem risco (do estado, por exemplo) líquidos e de curto prazo.
Dir-me-ão: calma aí! Se fosse assim como podiam os bancos remunerar os depósitos ou, pior ainda, como poderiam os bancos emprestar às empresas e às famílias?
Simples – os bancos remunerariam os depósitos passando para os clientes uma parte do rendimento dos títulos de dívida e dos depósitos no banco central (atualmente o BCE paga 3% sobre os depósitos dos bancos).
Para emprestar às empresas e às famílias os bancos teriam de pedir emprestado. Como? A quem?
Mais uma vez, simples - recorrendo aos mercados de capitais, por exemplo, emitindo obrigações ou recorrendo aos bancos centrais.
Provavelmente muitos dos compradores de obrigações seriam os atuais depositantes.
Imaginemos que o banco central paga 2% pelos depósitos dos bancos. O banco comercial pode pagar ao seu cliente 1% e ficar com uma margem de 1%. Se o banco emitir obrigações para o público terá de pagar bem mais – digamos 3%. O público teria de escolher ter dinheiro seguro a render 1% ou tomar um pouco de risco e ter um rendimento de 3%.
Hoje, quando as pessoas depositam dinheiro num banco, ficam com a ideia que dinheiro e depósitos são a mesma coisa. Não são! Um depósito é um crédito que tenho sobre o banco e, como qualquer outro crédito, o devedor pode poder pagar ou não poder.
Esta confusão vem, em parte, do facto de acreditarmos que o estado, de uma forma ou de outra, garante os depósitos.
Acabando com a reserva fracionária podemos dispensar esta “garantia” implícita do estado. As pessoas sabem que os depósitos são seguros, mas rendem pouco ou mesmo nada, se querem ter poupanças remuneradas têm de correr algum risco e, talvez o mais importante, ter consciência dele.
Naturalmente que acabar com a reserva fracionária não é o paraíso na terra.
Por um lado, seria necessário um longo e complexo período de transição entre o modelo atual e o putativo modelo futuro, por outro lado, provavelmente, o crédito para empresas e famílias ficaria um pouco mais caro.
Embora o crédito para famílias e empresas pudesse ficar um pouco mais caro não é garantido que o custo para a comunidade como um todo fosse maior.
Quanto custa resolver uma crise bancária? Quanto dinheiro tem o estado (todos nós) de despejar em cima do sistema bancário para reequilibrar o sistema? Quantos milhões de desempregados podem surgir na sequência de uma crise bancária? Quanto sofrimento humano poderíamos evitar?
Finalmente só mais uma nota: o dinheiro digital poderia tornar tudo isto muito mais simples.
Um tema interessante a que haveremos de voltar.
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