1 - Convergem para o tema desta crónica duas circunstâncias:
Em primeiro lugar, a promessa feita na crónica do mês passado, a propósito da cambalhota do PS, de que voltaria em breve ao tema da regionalização do País.
Em segundo lugar, a feliz coincidência de estar a escrever a crónica no dia 2 de Abril, em que se cumprem 47 anos sobre a aprovação da Constituição de 1976, farol que nos serve de guia para o convívio com a democracia e as liberdades e que regula a organização do nosso sistema político.
A combinação dessas duas circunstâncias permite desde logo tirar uma conclusão: estando a Regionalização estabelecida nos artigos 255º e seguintes da Lei Fundamental, como integradora da autonomia local, há 47 anos que os órgãos de soberania que sucessivamente têm administrado os destinos da Pátria violam, tranquilamente, por omissão, os ditos preceitos constitucionais.
O procedimento obedece a um ritual: tendo-se o PS e o PSD revezado no pastoreio do povo, desde esses tempos, já desvanecidos na memória, que se seguiram à Revolução de Abril, até aos dias de hoje, a solo ou sob formas mais criativas, cada um desses partidos, no tempo de pousio – isto é, quando na Oposição -, inscrevem no programa que apresentam às eleições seguintes a promessa, ou a sugestão, da Regionalização.
Quando vencem essas eleições, e regressam ao exercício do poder, rapidamente esquecem a promessa, migrando o empenhamento na regionalização para o programa e as promessas do partido do governo da véspera, vencido nessas eleições.
Normalmente, a culpa pelo abandono dassa reforma nunca é atribuído a si próprio pelo incumpridor da promessa.
A culpa é sempre do outro – como é habito em tudo, já que raramente assumimos as nossas próprias responsabilidades.
Só não foi assim com António Guterres – que assumiu, e afirmou-o expressamente, com coragem política, estar disponível para perder competências e atribuições, em benefício das periferias territoriais.
Que digo eu?
Foi mais do que isso: ainda recordo, naquelas ressonâncias que teimam em permanecer connosco, António Guterres a proclamar que desejava mesmo perder poder, por vontade própria, distribuindo-o pelas regiões a criar.
Como teve coragem para levar a referendo a sua vontade – mas que perdeu, graças à oposição do líder da Oposição, do PSD, de então, o actual Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.
E também graças à conjugada confusão estratégica com que o PS lidou com o referendo, no que ainda hoje se não percebeu se foi vontade ou se foi inépcia, traduzida em divergências sobre a dimensão geográfica das Regiões a criar.
Aliás, os defensores da Regionalização – que os há, mesmo entre os políticos no activo -, tiveram sempre, ao longo dos anos, a obstrução das figuras tutelares, e titulares, destas décadas passada, no que toca ao exercício de funções nos órgãos cimeiros do Estado; como é o caso de Mário Soares, Cavaco Silva, José Sócrates ou Marcelo Rebelo de Sousa.
2 – Desta vez, parecia que os astros se conjugavam para, finalmente, o tema regressar à agenda.
António Costa e Rui Rio, este de conversão tardia, fizeram-nos saber que se achavam de acordo quanto à oportunidade do avanço do processo de criação das Regiões Administrativas.
As razões apresentadas para essa conjugação de vontades radicavam na experiência que ambos tinham como Presidentes das duas maiores Câmaras Municipais do País, Lisboa e Porto; e da percepção que tais funções eram esvaziadas de competências efectivas, trituradas pelo poder, pelo arbítrio ou pela ineficácia e burocracia do Estado Central.
Em particular com Rui Rio, não será alheia à sua conversão à causa da harmonização territorial a influência de defensores desde sempre dessa reforma político-administrativa, como foram Luís Valente de Oliveira e José da Silva Peneda.
Só que Rui Rio foi embora, e veio Luís Montenegro.
E tudo voltou à estaca zero:
Luís Montenegro apressou-se a declarar-se opositor, para já, ao processo de regionalização.
(É sempre só “para já”, em formulação mitigada, não vá a opinião pública perguntar-se se a causa do nosso atraso não estará no facto de Portugal ser o País mais centralizado da Europa a que pertencemos.)
E ficou desde então aberto ao PS o caminho para as desculpas do costume: que a culpa é de Luís Montenegro; e que não é agora o momento, que mais vale suspender o processo de regionalização, para não o matar de vez.)
Ora, se há coisa que devemos à Constituição, é cumpri-la.
E se, numa nova consulta, feita sem reserva mental, o povo a rejeitar, pode deixar-se cair essa bandeira.
Mas, sem essa consulta, fica-se com a impressão de uma tão magna questão ser afinal decidida em “petit comité”, num arranjo de aparelhos partidários tão iguais uns aos outros – e ambos a querem manter os seus pequenos poderes, que lhes vêm da proximidade a quem manda.
3 – Ainda a propósito do cumprimento da Constituição, não há que fugir ao tema que tem ocupado o centro do debate político nas últimas semanas: o direito à habitação, também ele garantido na Constituição.
A nova versão das medidas do Governo, aprovadas em Conselho de Ministros da semana passada, e que agora vão ao Parlamento, é uma simplificação da versão inicial, que tantas críticas suscitou.
Ouvi há pouco Luís Marques Mendes, na televisão, afirmar que essa simplificação, nomeadamente no chamado arrendamento coercivo, acabou por produzir um efeito perverso: apresentada como uma medida emblemática, a ser levada a cabo pela Administração Central, aplicável à generalidade dos imóveis devolutos, mais de 700.000 casas, viu-se reduzida, depois dos avisos do Presidente da República quanto à possibilidade de veto, a não mais de 10.000 casas, só em zonas de forte concentração urbana, medida a ser levada a cabo pelas autarquias – e, destas, só as que quisessem.
Assim, conclui Luís Marques Mendes -,que muitas vezes fala como emissário -, o Governo acabou por criar uma atmosfera de desconfiança e de temor por parte dos proprietários de imóveis, enfraquecendo a já de si escassa vontade destes de colocar no mercado de arrendamento os imóveis que possuem.
Melhor teria feito o Governo se pusesse na ordem os bancos, que têm aproveitado o contexto para espoliar os fracos salários dos jovens casais, limitando as subidas inaceitáveis das taxas de juro que têm sido aplicadas; ou se proibisse a compra de imóveis por estrangeiros não-residentes, como já se faz em vários países da Europa, enfraquecendo a dinâmica especulativa que tem marcado esse segmento de mercado.
Mas os bancos parece terem entre nós um estatuto de impunidade e de protecção; e os estrangeiros ricos parecem em muitos casos os novos donos do nosso País – mesmo em sentido real, donos das melhores casas, nos melhores locais, subindo por isso o preço das casas para quem dela precisa.
Às vezes, faz-nos falta um sobressalto cívico, que seja capaz de mudar rapidamente muitos dos nossos males – que são atávicos.
Em Dezembro de 1917, Almada Negreiros, no “Ultimatum Futurista às gerações portuguesas do século XX”, proclamava que “O povo completo será aquele que tiver reunido no seu máximo todas as qualidades e todos os defeitos. Coragem, Portugueses, só vos faltam as qualidades.”
Hoje, esse retrato não se nos aplica.
Mas ainda nos faltam, na verdade, algumas qualidades; e algum sangue na guelra.
1 - Convergem para o tema desta crónica duas circunstâncias:
Em primeiro lugar, a promessa feita na crónica do mês passado, a propósito da cambalhota do PS, de que voltaria em breve ao tema da regionalização do País.
Em segundo lugar, a feliz coincidência de estar a escrever a crónica no dia 2 de Abril, em que se cumprem 47 anos sobre a aprovação da Constituição de 1976, farol que nos serve de guia para o convívio com a democracia e as liberdades e que regula a organização do nosso sistema político.
A combinação dessas duas circunstâncias permite desde logo tirar uma conclusão: estando a Regionalização estabelecida nos artigos 255º e seguintes da Lei Fundamental, como integradora da autonomia local, há 47 anos que os órgãos de soberania que sucessivamente têm administrado os destinos da Pátria violam, tranquilamente, por omissão, os ditos preceitos constitucionais.
O procedimento obedece a um ritual: tendo-se o PS e o PSD revezado no pastoreio do povo, desde esses tempos, já desvanecidos na memória, que se seguiram à Revolução de Abril, até aos dias de hoje, a solo ou sob formas mais criativas, cada um desses partidos, no tempo de pousio – isto é, quando na Oposição -, inscrevem no programa que apresentam às eleições seguintes a promessa, ou a sugestão, da Regionalização.
Quando vencem essas eleições, e regressam ao exercício do poder, rapidamente esquecem a promessa, migrando o empenhamento na regionalização para o programa e as promessas do partido do governo da véspera, vencido nessas eleições.
Normalmente, a culpa pelo abandono dassa reforma nunca é atribuído a si próprio pelo incumpridor da promessa.
A culpa é sempre do outro – como é habito em tudo, já que raramente assumimos as nossas próprias responsabilidades.
Só não foi assim com António Guterres – que assumiu, e afirmou-o expressamente, com coragem política, estar disponível para perder competências e atribuições, em benefício das periferias territoriais.
Que digo eu?
Foi mais do que isso: ainda recordo, naquelas ressonâncias que teimam em permanecer connosco, António Guterres a proclamar que desejava mesmo perder poder, por vontade própria, distribuindo-o pelas regiões a criar.
Como teve coragem para levar a referendo a sua vontade – mas que perdeu, graças à oposição do líder da Oposição, do PSD, de então, o actual Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.
E também graças à conjugada confusão estratégica com que o PS lidou com o referendo, no que ainda hoje se não percebeu se foi vontade ou se foi inépcia, traduzida em divergências sobre a dimensão geográfica das Regiões a criar.
Aliás, os defensores da Regionalização – que os há, mesmo entre os políticos no activo -, tiveram sempre, ao longo dos anos, a obstrução das figuras tutelares, e titulares, destas décadas passada, no que toca ao exercício de funções nos órgãos cimeiros do Estado; como é o caso de Mário Soares, Cavaco Silva, José Sócrates ou Marcelo Rebelo de Sousa.
2 – Desta vez, parecia que os astros se conjugavam para, finalmente, o tema regressar à agenda.
António Costa e Rui Rio, este de conversão tardia, fizeram-nos saber que se achavam de acordo quanto à oportunidade do avanço do processo de criação das Regiões Administrativas.
As razões apresentadas para essa conjugação de vontades radicavam na experiência que ambos tinham como Presidentes das duas maiores Câmaras Municipais do País, Lisboa e Porto; e da percepção que tais funções eram esvaziadas de competências efectivas, trituradas pelo poder, pelo arbítrio ou pela ineficácia e burocracia do Estado Central.
Em particular com Rui Rio, não será alheia à sua conversão à causa da harmonização territorial a influência de defensores desde sempre dessa reforma político-administrativa, como foram Luís Valente de Oliveira e José da Silva Peneda.
Só que Rui Rio foi embora, e veio Luís Montenegro.
E tudo voltou à estaca zero:
Luís Montenegro apressou-se a declarar-se opositor, para já, ao processo de regionalização.
(É sempre só “para já”, em formulação mitigada, não vá a opinião pública perguntar-se se a causa do nosso atraso não estará no facto de Portugal ser o País mais centralizado da Europa a que pertencemos.)
E ficou desde então aberto ao PS o caminho para as desculpas do costume: que a culpa é de Luís Montenegro; e que não é agora o momento, que mais vale suspender o processo de regionalização, para não o matar de vez.)
Ora, se há coisa que devemos à Constituição, é cumpri-la.
E se, numa nova consulta, feita sem reserva mental, o povo a rejeitar, pode deixar-se cair essa bandeira.
Mas, sem essa consulta, fica-se com a impressão de uma tão magna questão ser afinal decidida em “petit comité”, num arranjo de aparelhos partidários tão iguais uns aos outros – e ambos a querem manter os seus pequenos poderes, que lhes vêm da proximidade a quem manda.
3 – Ainda a propósito do cumprimento da Constituição, não há que fugir ao tema que tem ocupado o centro do debate político nas últimas semanas: o direito à habitação, também ele garantido na Constituição.
A nova versão das medidas do Governo, aprovadas em Conselho de Ministros da semana passada, e que agora vão ao Parlamento, é uma simplificação da versão inicial, que tantas críticas suscitou.
Ouvi há pouco Luís Marques Mendes, na televisão, afirmar que essa simplificação, nomeadamente no chamado arrendamento coercivo, acabou por produzir um efeito perverso: apresentada como uma medida emblemática, a ser levada a cabo pela Administração Central, aplicável à generalidade dos imóveis devolutos, mais de 700.000 casas, viu-se reduzida, depois dos avisos do Presidente da República quanto à possibilidade de veto, a não mais de 10.000 casas, só em zonas de forte concentração urbana, medida a ser levada a cabo pelas autarquias – e, destas, só as que quisessem.
Assim, conclui Luís Marques Mendes -,que muitas vezes fala como emissário -, o Governo acabou por criar uma atmosfera de desconfiança e de temor por parte dos proprietários de imóveis, enfraquecendo a já de si escassa vontade destes de colocar no mercado de arrendamento os imóveis que possuem.
Melhor teria feito o Governo se pusesse na ordem os bancos, que têm aproveitado o contexto para espoliar os fracos salários dos jovens casais, limitando as subidas inaceitáveis das taxas de juro que têm sido aplicadas; ou se proibisse a compra de imóveis por estrangeiros não-residentes, como já se faz em vários países da Europa, enfraquecendo a dinâmica especulativa que tem marcado esse segmento de mercado.
Mas os bancos parece terem entre nós um estatuto de impunidade e de protecção; e os estrangeiros ricos parecem em muitos casos os novos donos do nosso País – mesmo em sentido real, donos das melhores casas, nos melhores locais, subindo por isso o preço das casas para quem dela precisa.
Às vezes, faz-nos falta um sobressalto cívico, que seja capaz de mudar rapidamente muitos dos nossos males – que são atávicos.
Em Dezembro de 1917, Almada Negreiros, no “Ultimatum Futurista às gerações portuguesas do século XX”, proclamava que “O povo completo será aquele que tiver reunido no seu máximo todas as qualidades e todos os defeitos. Coragem, Portugueses, só vos faltam as qualidades.”
Hoje, esse retrato não se nos aplica.
Mas ainda nos faltam, na verdade, algumas qualidades; e algum sangue na guelra.
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