Muito boa gente começa a tentar convencer-nos de que nos devemos habituar a viver com inflação mais alta.
Boa gente aqui não é ironia. Economistas consagrados como Olivier Blanchard, Mohamed El-Erian ou Vítor Constâncio defendem que o alvo da política monetária deve ser uma inflação mais alta que os canónicos 2%.
Ninguém ignora que elevar o alvo da inflação tem aspetos positivos.
Se os bancos centrais passarem a tolerar uma inflação mais alta, digamos 3% ou mesmo 4%, ganham margem de manobra, nomeadamente quando for necessário combater uma ameaça de recessão.
Com taxas de inflação na casa dos 3% - 4% tenderemos a ter, em tempos “normais”, taxas de juro nominais algures no intervalo entre 4 e 5% o que equivale a taxas de juro reais um pouco acima de 1%.
Se para combater uma recessão for necessário baixar o custo do dinheiro e o ponto de partida for, por exemplo, 4%, há mais espaço para reduzir os juros antes de chegar ao zero ou mesmo, como aconteceu recentemente, a patamares negativos.
A experiência recente mostra que é possível viver com taxas de juro ligeiramente negativas durante algum tempo. Foi assim na zona euro e ainda é assim, nos prazos mais curtos, no Japão. Curiosamente a Reserva Federal americana nunca quis entrar em território negativo, o mais baixo que aceitou experimentar foi o intervalo 0% - 0,25%.
Contudo, estamos a perceber agora como é difícil sair de um regime de taxas de juro muito baixas para um regime de taxas de juro “normais”. O que a experiência contemporânea nos diz é que idealmente não devemos pisar territórios negativos em matéria de juros nominais.
Partir de patamares mais altos reduz o risco de ter de chegar a níveis de taxas de juro nominais demasiado baixas, no limite, negativas para combater as fases baixas do ciclo e, sendo assim, seria recomendável tolerar inflação mais alta que 2%.
Não obstante reconhecer vantagens num regime de inflação mais elevada há que perceber que os riscos da eventual mudança não são de somenos.
Um dos problemas é que a reação dos bancos centrais em relação à inflação é historicamente assimétrica. Os bancos centrais foram historicamente mais complacentes com os excessos inflacionistas do que com as ameaças deflacionistas.
Nos Estados Unidos a taxa de inflação acumulada entre 2000 e 2023 é de 79%, contudo, se o alvo dos 2% tivesse sido cumprido seria de 58%.
Não é difícil perceber porquê. Combater a inflação, subindo taxas de juro, reduzindo a procura e, eventualmente gerando desemprego, é muito menos popular que ajudar a economia em tempos menos faustos, reduzindo taxas de juro e estimulando a procura agregada. Ninguém gosta de dar más notícias!
A experiência recente mostra como esse enviesamento é real. Quando confrontados como o surto inflacionista na meada de 2021, os bancos centrais quiseram convencer-nos de que a coisa era temporária, curava-se por si mesma e que o melhor era fazer nada. Na verdade só se mexeram quando, depois da guerra na Ucrânia, o surto acelerou e ameaçava ficar fora de controlo. Estamos todos agora a pagar com língua de palmo esse erro crasso.
Aumentar o nível de inflação considerada tolerável é, porventura, abrir a porta para uma ainda maior complacência para com os “excessos” da inflação.
Elevar o alvo da inflação incorpora um outro risco significativo.
Alan Greenspan, o lendário presidente da Reserva Federal, dizia que o estado ideal da inflação seria aquele em que as variações esperadas no nível de preços não alteram significativamente as decisões das famílias e das empresas. A boa inflação é a que se ignora, a que não é assunto!
Sabemos que quando os bancos centrais conseguem ancorar as expetativas inflacionistas dos agentes económicos em torno dos 2% o número de pesquisas no google sob a palavra chave inflação é diminuto.
Também sabemos, por observação empírica das décadas que antecederam a crise financeira de 2008/2009 que, quando a inflação estabiliza em torno dos 2% a reação dos agentes económicos é tranquila. A luta dos trabalhadores por melhores salários é moderada e as empresas não correm a aumentar preços.
Em boa verdade não conhecemos a função de reação dos agentes económicos se os bancos centrais colocarem as expetativas da inflação consistentemente na casa dos 3 – 4%.
Em tese podemos pensar que, admitindo que os bancos centrais são suficientemente credíveis e comprometidos com o novo paradigma, este possa ser internalizado pelos agentes económicos sem perturbações de maior.
Não é possível ter certezas nesta matéria. Na verdade, é território desconhecido e é tudo menos garantido que a luta de todos contra todos pela distribuição do “bolo”, que é típica dos processos inflacionários, não ocorra num eventual cenário de maior tolerância para com a inflação. Sabemos bem quem são os perdedores quando essa luta distributiva se desencadeia: os mais frágeis, os que não têm poder reivindicativo, os que não têm voz.
Os grandes bancos centrais completaram exercícios de revisão estratégica da política monetária nos últimos anos, o BCE entre 2020 – 2021 e a Reserva Federal (FED) nos anos 2019 – 2020. Esses exercícios impunham-se em função das novas realidades criadas pela crise financeira e pelas medidas extremas nunca antes experimentadas que foi necessário colocar no terreno para a combater.
Em nenhum dos casos resultou uma recomendação para a elevação do alvo da inflação.
No caso do BCE o alvo passou a ser 2% “tout court” tendo caído a formulação inicial de “idealmente um pouco abaixo”, provavelmente uma exigência original germânica que, na verdade, nunca fez grande sentido.
Talvez a alteração mais relevante nas estratégias da política monetária dos grandes bancos centrais tenha sido a explicitação de um ponto que sempre foi algo contencioso – o carácter simétrico do alvo da inflação.
Quer o BCE quer a FED passaram a reconhecer que é possível tolerar temporariamente inflação acima dos 2% desde que isso aconteça depois de um período em que o andamento dos preços tenha estado por baixo da norma.
Um caso curioso é o banco central do Canadá que reafirmou o alvo dos 2% embora admitindo variações num intervalo de 1 a 3%.
Em suma, mudar a tolerância à inflação pode ser tentador numa altura em que está a ser difícil trazer o indicador para território consistente com a estabilidade dos preços como definida nos estatutos dos bancos centrais. Se a tentação é grande também são grandes os riscos e na minha apreciação os riscos são aqui maiores que os benefícios.
As recentes revisões de estratégia dos bancos centrais parecem-me, no essencial, corretas e fazer uma nova revisão apenas porque enfrentamos um surto inflacionista que está a ser difícil de debelar ficaria sempre sob a suspeita de batota.
Neste particular sou conservador.
Não há inqueritos válidos.