Inicialmente agendado para 19 de setembro, altura de grandes incêndios que, de certa forma, cortaram a ligação entre o norte e o sul do país, foi apenas a 29 de outubro que a CNIS realizou o seminário «Vivências da sexualidade, afetos e relações de intimidade: o caso das pessoas com deficiência apoiadas pelas IPSS».
Depois de um primeiro encontro subordinado ao mesmo tema, mas dedicado aos idosos e que decorreu em Aveiro, o Fundão recebeu, finalmente, a abordagem proposta pela CNIS à sexualidade das pessoas com deficiência.
“Um dos objetivos mais importantes das IPSS na comunidade é o de contribuir para o bem-estar social e individual dos cidadãos, em especial daquelas pessoas a quem têm a responsabilidade de ajudar e apoiar através da prestação de serviços de ação social”, começou por afirmar Eleutério Alves, vice-presidente da CNIS, na abertura dos trabalhos no Casino Fundanense, acrescentando: “O tema da sexualidade nas nossas instituições, sobretudo nas que apoiam pessoas idosas ou pessoas com deficiência, tem, numa boa parte delas, passado ao lado das preocupações quer de dirigentes, quer dos trabalhadores que diariamente cuidam dos nossos utentes”.
Segundo Eleutério Alves, “a CNIS reconheceu a importância do tema e a necessidade de conferir mais competências a quem cuida destes utentes”, pelo que “a sexualidade na deficiência tem de ser levada a sério por quem dirige e por quem cuida”, defendeu.
“E para tratar de assuntos que interessam às nossas associadas e que conduzam ao bem-estar e dignidade dos utentes, independentemente da sua complexidade na abordagem, não é preciso ter coragem, como afirmaram alguns dos palestrantes do seminário de Aveiro, é preciso ter vontade, determinação, responsabilidade e competência para resolver”, sustentou o vice-presidente da CNIS, referindo: “Como disse o nosso presidente, padre Lino Maia, ao abordar este tema em Aveiro, ‘os nossos utentes são pessoas de direitos, mas também de expressões’ e eu permito-me acrescentar que são pessoas de afetos e sentimentos. A sexualidade é uma dessas expressões que assenta nos sentimentos mais íntimos de cada um, independentemente da sua condição física, de idade, de género ou outra qualquer condicionante de vida”.
Para Eleutério Alves, na vivência da sexualidade, do afeto, do carinho e do amor, nas pessoas com alguma deficiência “a forma de se exprimirem é que pode ser diferente e, daí, ser necessário uma abordagem também ela diferente, talvez mais complexa, mas igualmente, por isso, mais desafiante para quem lida com o problema”.
Perante uma plateia repleta por um grupo muito interessado, o «vice» da CNIS lembrou que, “nas IPSS, o utente deve estar sempre no centro das preocupações e atenção” e sublinhou que “a deficiência não retira direitos nem dignidade, antes obriga a uma maior atenção para que ambos sejam garantidos e se mantenham presentes ao longo da sua vida”.
Ao longo do dia, perante uma plateia repleta e bastante interessada, falou-se sobre a importância que a sexualidade tem na vida das pessoas com deficiência, o tabu que ainda é e um tema estigmatizante, mas sempre enfatizando a plenitude de direitos que as pessoas com deficiência têm.
Autonomização, proteção, direitos humanos, dignidade e diversidade foram igualmente temas abordados, sublinhando-se que “as pessoas com deficiência são sujeitos de direitos”.
Diversas intervenções abordaram os direitos sexuais da mulher com deficiência, mas também questões como a igualdade de género, “temas que ainda têm de se trabalhar muito”, lembrou Alcina Cerdeira, presidente da União Distrital das IPSS de Castelo Branco (UDIPSSCB).
Entre as muitas ideias passadas na jornada do Fundão, foi afirmado que “a sexualidade é energia positiva que ativa todos os sentidos”, defendeu-se a literacia e uso de linguagem mais acessível e que, dentre mitos e tabus que criam impactos, é preciso desmistificar a sexualidade na saúde e na vida de todas as pessoas, uma questão que ainda é, muitas vezes, negligenciada e ignorada.
Foram muitas as vozes que reclamaram formação contínua e mais informação, reivindicando um investimento na educação para a sexualidade, uma vez que esta “é boa energia e também saúde”.
Uma ideia muito importante que passou e foi sublinhada diversas vezes foi a de que as mulheres com deficiência têm direito à vontade própria, pois é uma questão de dignidade humana, e que “a sexualidade não é apenas um ato pessoal, é um ato pessoalíssimo”.
Logo na primeira sessão plenária, Raquel Alvarinho Correia, da APPACDM Castelo Branco, começou logo por lembrar que o tema da sexualidade “é complexo e um tabu e um tema estigmatizante na deficiência”, lembrando os mitos de que “as pessoas com deficiência são assexuadas” ou, então, que são hipersexuadas.
Depois, Raquel Correia considerou que “autonomia e proteção é uma dicotomia difícil de equilibrar”, porque pesam em pratos diferentes questões como “o dar liberdade versus o proteger, prevenindo experiências negativas” ou “o reconhecer a sexualidade como um direito/necessidade a ser respeitado versus uma fonte de problemas e desafios”. Neste âmbito, a preletora lembrou que “os direitos e as escolhas nem sempre são respeitados, porque ainda persiste um clima de aversão ao risco”.
De seguida, Paula Campos Pinto, do Observatório de Deficiência e Direitos Humanos, sobre a temática «Deficiência intelectual, consentimento e acompanhamento de maior: que lugar para a sexualidade?», afirmou que “as pessoas com deficiência são pessoas sujeitos de direito”, no âmbito do modelo dos direitos humanos, que reconhece ainda “a dignidade inerente a todas as pessoas com deficiência e a deficiência como parte da diversidade humana”, lembrando que, “a individualização da resposta, prende-se com a qualidade dos serviços”.
Sobre a “nova visão” que gira em torno da inclusão, direitos e autodeterminação, Paula Campos Pinto frisou que “para incluir é preciso transformar” e que, na sexualidade, “autodeterminação é ter liberdade de escolha e controlo sobre onde, com quem e de que modo as quer viver”.
Depois de distinguir capacidade jurídica de capacidade mental, a jurista considerou que “está a haver uma evolução, por parte dos tribunais, no tipo de sentença sobre a representação geral e a representação especial”, no entanto, os dados estatísticos apresentados revelam ainda uma esmagadora preponderância da opção pela representação geral.
A questão da representação foi, igualmente, abordada por Ana Rodrigues, assessora da CNIS, que revelou um caso em que uma mulher deficiente e mãe de uma filha, já com 22 anos, após a promoção da representação geral, foi ainda impedida pelo Tribunal de, entre outras questões, de perfilhar. Como assim, se há uma realidade que não pode ser alterada?
Cruzando a representação com a questão da esterilização das mulheres com deficiência, Ana Rodrigues questionou “como pode haver uma esterilização voluntária quando a decisão é de outro?”, ou seja, do representante legal.
Referindo a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), a assessora da CNIS lembrou que este documento “estabelece para os Estados a obrigação de reconhecer que mulheres e raparigas com deficiência estão sujeitas a discriminações múltiplas, bem como de tomar medidas de combate a essas discriminações”.
Por fim, Ana Rodrigues revelou uma situação que devia envergonhar o nosso país: “Apenas três dos 27 países da União Europeia permitem a esterilização forçada de raparigas menores, a Chéquia, a Hungria e… Portugal”.
E concluiu: “A esterilização forçada em Portugal é inadmissível”.
Sobre «O papel da saúde na sexualidade, afetos e relações de intimidade das pessoas com deficiência», Ana Sofia Carvalho, da Unidade de Cuidados na Comunidade de Bragança, começou por dizer que “a sexualidade começa logo em bebé”, sustentando que “os impulsos sexuais não são diferentes na deficiência física nem na deficiência intelectual do que é nas demais pessoas.
Defendendo que “a comunicação é a base da educação sexual”, a enfermeira afirmou que “tem de se falar abertamente da sexualidade com as pessoas com deficiência”, ao que a sua colega Conceição Tomé acrescentou: “As questões da sexualidade devem introduzir-se de forma lúdica, com filmes e jogos, por exemplo”.
Algo muito importante é “a consulta deve ser centrada no utente e não no técnico ou acompanhante, devendo todas as questões ser colocadas ao utente”, sustentou.
A terminar, Ana Sofia Carvalho sublinhou que “o direito à sexualidade é o mesmo para todas as pessoas, tem é de ser adaptado nas pessoas com deficiência”.
Já da parte da tarde, Rui Coimbras, presidente da Federação das Associações Portuguesas de Paralisia Cerebral (FAPPC), deixou o seu testemunho, ele que tem paralisia cerebral.
“Não há pior do que ouvir dizer que, sexualmente, as pessoas com deficiência são uns anjinhos que Deus pôs na Terra”, começou por dizer, reclamando o fim da esterilização forçada: “É preciso que Portugal acabe com a esterilização forçada. Não há nenhuma razão para que Portugal não mude a lei. Temos de combater o preconceito de que uma pessoa com deficiência vai ter filhos com deficiência”.
Já Vera Carnapete, da Associação para o Planeamento Familiar do Centro, lembrou que “a sexualidade tem dimensões biológica, psicoativa e sociocultural”, indicando que “os principais agentes de educação para a sexualidade são a família (pais), pares e Media” e deixou um alerta: “A informação que passamos de forma informal sobre sexualidade é, muitas vezes, prejudicial para quem a recebe”.
“Quando vos disserem que a educação sexual acaba com a inocência, respondam: a educação sexual acaba com a ignorância”, sustentou Vera Carnapete, acrescentando: “Se há pessoas que nasceram com uma incapacidade, mas com capacidade sexual, então, vamos ajudá-la”.
Por fim, Iola Oliveira e maria João Simões, da ARCIL (Associação para a Recuperação de Cidadãos Inadaptados da Lousã, apresentaram o SMARTS (Supporting Me About Rights To Sexuality), um projeto de Tomada de Decisão Apoiada (TDA), “em qualquer área da vida, mas especificamente na da sexualidade”.
“Enquanto técnicos temos de apetrechar as pessoas das ferramentas necessárias para que elas possam tomar as suas decisões e, assim, para correrem o risco menos penalizante possível”, afirmou Iola Oliveira, lembrando: “Nós, muitas vezes, erramos e estas pessoas também devem experienciar isso”.
A terminar, a técnica da ARCIL defendeu que “nós somos técnicos, não somos mágicos”, pelo que o projeto SMARTS também surge para apoiar o técnico”.
A fechar o seminário no Fundão, Alcina Cerdeira congratulou-se com a forma como os trabalhos decorreram, lendo depois as Conclusões dos mesmos.
“Valeu muito a pena, porque todas as participações e reflexões foram excelentes. Foi um dia riquíssimo. Este tipo de iniciativas é muito positivo para desmitificar estas questões. Temos que continuar a realizar uma reflexão profunda, como agora fizemos”, defendeu.
As IPSS devem contribuir para uma vivência da sexualidade harmoniosa, informada, saudável e responsável, pelo que é necessário promover um diálogo aberto e inclusivo, reconhecer que a sexualidade é um aspeto fundamental da identidade humana, que deve ser respeitado independentemente das limitações físicas ou cognitivas. E devem-se desenvolver políticas que respeitem, protejam e dignifiquem as pessoas com deficiência.
Pedro Vasco Oliveira (texto e fotos)
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