Este ano podemos consignar um por cento do nosso IRS a uma entidade de natureza social, ambiental, cultural ou religiosa, o dobro do que podíamos fazer anteriormente. Não é uma quantia decisiva, mas tendo em conta que ela irá ser repartida por um pouco mais de 5000 instituições pode ainda significar algo de relevante, pelo menos para algumas delas.
O aumento da consignação mereceu grande consenso político. A proposta de lei do governo nesse sentido foi aprovada por unanimidade na Assembleia da República. Mas a consignação de receitas de impostos deve ser usada com moderação.
Por princípio ganhamos em que os representantes do interesse coletivo, que administram o Estado, possam dispor das receitas fiscais para fins coletivos em função das necessidades sociais e não que haja um “carrinho de compras” de cada imposto, que poderia levar a alocações desequilibradas, ineficientes ou erradas das receitas fiscais em função dos interesses particulares de cada contribuinte ou grupo de contribuintes. Contudo, dar aos contribuintes a possibilidade de decidirem atribuir uma pequena parte do seu esforço contributivo a uma causa de interesse coletivo que os mobilize tem também algumas vantagens. O Estado, assim, está a dar um sinal de viabilização do apoio a causas que os cidadãos defendam.
Acho aceitável esta medida em que não há esforço individual, em que no fundo eu peço ao Estado que faça solidariedade por mim, mas preferir-lhe-ia uma solução alternativa em que pusesse o Estado a contribuir a par comigo. Por exemplo, em que cada euro de donativo individual meu fosse complementado por um euro dado pelo Estado. Creio que nessa solução haveria melhor pedagogia da solidariedade.
O que me preocupa na medida, contudo, é o efeito real deste esforço solidário, que é uma gota de água no oceano de necessidade de financiamento das causas sociais, não pode servir para desvalorizar a necessidade de financiamento adequado dessas causas ou legitimar o seu subfinanciamento.
O discurso da Secretária de Estado dos Assuntos Fiscais no debate da proposta do Governo mostrou o equívoco em que se lavra facilmente a propósito desta medida. Por um lado, reconheceu que as entidades beneficiárias da consignação “desenvolvem um trabalho muito meritório e são chamadas a cumprir uma missão de relevante interesse público”. Mas, por outro, afirmou que “a consignação de IRS constitui, não raras vezes, uma fonte de financiamento muito relevante e que marca a diferença na manutenção e na subsistência de boa parte destas entidades”[1].
Se as entidades beneficiadas pela nossa consignação desempenham uma missão de relevante interesse público devem ser devidamente compensadas por esse papel no quadro da cooperação que o Estado com elas estabelece, não devem precisar da consignação para a sua subsistência. Para isso deve haver – e até há – instrumentos que estipulam os direitos e deveres recíprocos do Estado e das entidades solidárias que desempenham, por delegação do Estado, funções que este entendeu não assumir diretamente, nomeadamente nos cuidados, na saúde, na educação, na inclusão social e em tantos outros domínios.
Se as entidades não forem por essa via devidamente compensadas e a verba que lhes consignamos for apenas substituir o subfinanciamento público, o efeito prático deste chamamento à solidariedade dos contribuintes é nulo. O nosso esforço solidário aplica os nossos impostos nos fins que o Estado devia assegurar e as nossas preferências não reforçam as causas que apoiamos, limitam-se a tornar menos visível um contributo público insuficiente.
Tudo será, ou seria, diferente, se as contribuições consignadas fizessem avançar certas causas em que acreditamos, certos valores que defendemos, ampliassem a força da sociedade civil para agir fora da sua relação com o Estado e para além dela. Esta parece-me ser a razão de ser de uma medida deste tipo. É isto que justifica que eu escolha uma instituição para apoiar.
Eu não quero que a consignação que faço sirva para mitigar os efeitos negativos de um Estado que arraste os pés no financiamento justo de serviços que tem o dever de garantir e escolheu prestar através de entidades de interesse público. Quero fazê-la para que sejam reforçadas com a minha migalha de apoio as causas que, no meu julgamento pessoal, o merecem.
[1] Intervenção de Cláudia Reis Duarte, Secretária de Estado dos Assuntos Fiscais, na discussão da Proposta de Lei 2/XVI/1, disponível em https://debates.parlamento.pt/catalogo/r3/dar/01/16/01/027/2024-06-21/52?pgs=52-53&org=PLC
Não há inqueritos válidos.