COLÓQUIO «O REGIME JURÍDICO DO MAIOR ACOMPANHADO»

A intencionalidade do regime é boa, mas a práxis ainda deixa a desejar

No encerramento de uma muito produtiva e participada jornada de apresentações e debate, o Colóquio «O Regime Jurídico do Maior Acompanhado» encerrou com a secretária de Estado da Ação Social e Inclusão, Clara Marques Mendes, a reafirmar o compromisso do Governo em estar “de espírito aberto para revisitar o regime do maior acompanhado”.
No final de um longo e profícuo dia de trabalho, no auditório do ISEC – Instituto Superior de Engenharia de Coimbra, o presidente da CNIS, começou por dizer que “a grande conclusão do Colóquio é que não há conclusões, mas sim constatações e constrangimentos identificados”, como, por exemplo, “as dúvidas sobre o acompanhante-cuidador e sobre os limites do acompanhante e os deveres do cuidador”.
Por isso, revisitar o Regime Jurídico do Maior Acompanhado é algo que interessa a todos e, por isso, ficou plasmado no Compromisso de Cooperação para o Sector Social Solidário 2025-2026 a criação de um grupo de trabalho para estudar a matéria.
“Estamos de espírito aberto para revisitar o Regime do Maior Acompanhado. A CNIS está de parabéns por realizar esta iniciativa e, desde já, solicito que nos enviem as conclusões e problemáticas aqui debatidas no Colóquio para que o grupo de trabalho possa ter algo mais com que trabalhar”, afirmou Clara Marques Mendes, que reforçou: “Comprometemo-nos a revisitar esta matéria juntamente com as instituições, a academia e os agentes da justiça e vamos ouvir para, depois, encontrarmos a melhor resposta”.

FATO À MEDIDA

Ao longo do dia em Coimbra, mais de uma centena de pessoas, entre dirigentes e, essencialmente, técnicos de instituições com diferentes respostas sociais, mas que em comum têm a figura do Maior Acompanhado no seu dia a dia, abordaram a legislação, os constrangimentos, casos reais vividos nas instituições, mas também as virtudes do regime.
É a Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto, que cria o regime jurídico do maior acompanhado, eliminando os institutos da interdição e da inabilitação, previstos no Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47 344, de 25 de novembro de 1966.
Antes da entrada em vigor desta lei e das alterações legislativas daí decorrentes, ou seja, “antes de 2019, as pessoas em causa podiam ser alvo de medida de interdição ou de inabilitação”, lembrou Mafalda Miranda Barbosa, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, sublinhando que, neste momento, “a regra é a capacidade da pessoa”, ou seja, “hoje, com o regime do maior acompanhado, passou-se do enfoque na incapacidade para a capacidade da pessoa, especialmente, porque o regime anterior era muito rígido, não acautelava problemas temporários e contribuía para a estigmatização da pessoa”.
Em suma, para a jurista, com o novo regime, a premissa é “proteger sem incapacitar”.
Uma ideia bastante reafirmada por diversos oradores foi a de que a Lei pretende “fazer um fato à medida de cada pessoa”, mas, como criticou Mafalda Miranda Barbosa, “muitas vezes esse fato à medida é feito a partir de um molde antigo”.
“Não estou segura de que a prática corresponda à intencionalidade do regime, que é boa”, sustentou a docente, sublinhando: “Só salvaguardando a vontade da pessoa se assegura a autonomia do acompanhado”.

PROJETO EQUAL

A questão de que o acompanhamento pode, no limite, acabar em representação legal esteve presente, surgindo a debate a problemática das representações gerais ou especiais.
A este propósito, Patrícia Neca, do Observatório da Deficiência e Direitos Humanos, do ISCSP, da Universidade de Lisboa, levou até Coimbra alguns dados resultantes do Projeto EQUAL - Igualdade perante a lei e o direito à autodeterminação das pessoas com deficiência intelectual e psicossocial, que “procurou identificar as oportunidades e os desafios na implementação da Lei nº. 49/2018 e os seus efeitos na participação e capacidade jurídica de pessoas com deficiência”.
No estudo foram analisadas as sentenças das comarcas de Viana do Castelo, Lisboa e Évora, do período entre fevereiro de 2019 e fevereiro de 2023. A análise mostrou que, em 82,3% das sentenças, o acompanhante tem poderes de representação geral e apenas em 16,5% de representação especial.
Ainda assim, a investigadora do ISCSP adiantou que, “ao longo do tempo, tem havido uma evolução nesta matéria, porque tem havido menos sentenças de representação geral e mais de representação especial”.
E muito desta realidade, ou seja, sentenças demasiado restritivas, acontece principalmente por falhas na avaliação das capacidades das pessoas a acompanhar. E acontece porque quem decreta as sentenças e quem conduz os processos de acompanhamento não tem a formação e, muitas vezes, sensibilidade, necessárias.
“Quem aplica a lei não pode ter um fato único, é preciso que conheça a pessoa e o seu estado”, defendeu Rui Coimbras, presidente da FAPPC (Federação das Associações Portuguesas de Paralisia Cerebral), que a este propósito lembrou que “a Paralisia Cerebral tem a barreira da fala”.
“Esta dificuldade leva a que muitas pessoas pensem que a pessoa em causa tem um problema cognitivo. Este estigma existe e não pode acontecer. Por isso, é preciso formação para os agentes judiciários e também para os da saúde”, argumentou Rui Coimbras.
Esta questão foi também abordada, já da parte da tarde do colóquio, por Helena Albuquerque, presidente da Humanitas - Federação Portuguesa para a Deficiência Mental, na perspetiva das pessoas com deficiência intelectual: “O problema é quando as incapacidades não são visíveis como acontece com a deficiência mental. Começa com a falta de empatia e desconhecimento por parte da sociedade, o que se reflete nos juízes e demais agentes judiciários e suas decisões”.
E se a intencionalidade do regime do maior acompanhado é boa, a práxis deixa a desejar, essencialmente, pela não feitura de um fato à medida para cada pessoa, seja deficiente, seja demente, esteja, permanente ou temporariamente, impedida de exercer alguns dos seus direitos pessoais.
Como foi logo dito na abertura dos trabalhos por Mafalda Miranda Barbosa, o Artigo 145.º do Código Civil, no seu nº1 é explícito em afirmar que “o acompanhamento é o mínimo necessário”. No entanto, pelo exposto pelos interlocutores, ainda há demasiadas sentenças a aplicar a representação geral e, aquando especial, ainda são muito restritivas e… desadequadas à realidade.

ACOMPANHANTE

Outra matéria abordada ao longo do dia no ISEC foi a questão da representação legal e a cargo de quem fica. Logo na abertura dos trabalhos, Ana Martins, do Gabinete de Gerontologia e Envelhecimento Ativo, da Câmara Municipal de Coimbra, lamentou a “grande dificuldade que é encontrar pessoas idóneas” que assegurem, de forma responsável, o acompanhamento.
Ainda no painel da manhã, Martha Xavier, presidente do Centro de Educação para o Cidadão com Deficiência de Mira Sintra, relatou a vivência na sua instituição, onde é acompanhante de diversos utentes, tal como Manuel António Teixeira, presidente da Fundação Santo António, de Marco de Canaveses, já no painel da tarde.
A falta de familiares idóneos leva a que sejam os responsáveis pelas instituições a ter de assumir o papel de acompanhantes.
“Um dos problemas que enfrentamos é o relacionamento com as famílias, porque muitas delas entendem que, assim que o familiar entra para a instituição, todas as responsabilidades passam para a instituição”, lamentou Manuel António Teixeira, referindo alguns casos e situações que tem vivido na instituição.
“Ser acompanhante é um papel muito pesado para quem o desempenha nas instituições”, considerou o dirigente da Fundação Santo António, acrescentando que, “mais do que as questões patrimoniais, a grande dificuldade é ter de decidir em matérias de saúde e questões médicas”.
Por seu turno, Marília Vaz, dos Inválidos do Comércio, abordou, entre outras questões, o acompanhamento institucional, que, já no período de debate da manhã, fora matéria a suscitar discussão.
Como referiu Marília Vaz, “o acompanhante deve ter a diligência requerida a ‘um bom pai de família’, privilegiar o bem-estar do acompanhado e, entre outras coisas, ter conhecimento e proximidade com o acompanhado”.
Então, quem deve ser o acompanhante? O dirigente máximo da instituição ou outra pessoa da instituição? Perante a dúvida surgida na plateia, no período de debate matinal, a resposta foi consensual em não ter de ser forçosamente o presidente da instituição, mas sim quem lida de forma mais próxima e frequente com o acompanhado.
Sobre as características do acompanhante muito foi dito, mas, novamente, de forma consensual.
“O acompanhante tem de ser uma pessoa com envolvimento direto com a pessoa acompanhada, até de forma afetiva, e tem de ser uma pessoa que cumpra as suas obrigações”, destacou a presidente da Humanitas, que sublinhou: “Privilegiando sempre o bem-estar do acompanhado”.
Antes, já Mafalda Miranda Barbosa lembrara que ao acompanhante cabe “assumir uma obrigação e cumprir essa obrigação”, daí não poder ser qualquer pessoa, mas necessariamente alguém idóneo.
Por outro lado, uma questão sempre suscitada é a do eventual conflito de interesses que pode existir na relação acompanhante-acompanhado.
Para Helena Albuquerque, “os conflitos de interesse foram bem acautelados pelo legislador”, por ter especificado as funções do acompanhante, pelo que “o conflito de interesses está minimizado”, aconselhando a consulta do «Guia da Humanitas», esclarecedor sobre a matéria em causa.
Por seu lado, Inês Robalo, procuradora da República, do gabinete do Procurador-Geral da República, para além de muitos esclarecimentos jurídicos, fez também um pouco de Direito Comparado, mostrando como é a realidade em outros países. Por exemplo, em França há uma bolsa de acompanhantes da qual, esgotadas as possibilidades familiares, o tribunal escolherá um, enquanto na Suíça há “curadores profissionais”.
Para Inês Robalo, cumprir a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência é necessário e para tal: “O acompanhante deve ter uma conduta pró-ativa na promoção da autonomia e capacidade do maior acompanhado e ser o garante da sua dignidade; é necessário criar uma rede pública de acompanhantes, com isenção e independência; deve haver uma melhor regulamentação da designação de técnicos de intervenção social que prestem apoio ao beneficiário; deve criar-se regulamentação sobre o regime de remuneração/pagamento de despesas de acompanhantes que desempenhem estas funções a título profissional”.
O debate após cada painel que preencheu o dia de trabalho foi muito profícuo, com muitas participações, que geraram debate a partir das dúvidas colocadas e dos casos concretos revelados.
Muitas ideias foram discutidas e outras lançadas a debate, concluindo-se, essencialmente que a intencionalidade do regime jurídico do maior acompanhado é boa, acima de tudo por pretende que se faça um fato à medida de cada pessoa, mas a sua aplicação pelos agentes judiciais e outros técnicos envolvidos, por falta de formação e sensibilidade, nem sempre é a mais adequada.

Pedro Vasco Oliveira (texto e fotos)

 

Data de introdução: 2025-05-06



















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