Subíamos em direcção ao Santo da Serra sob o sol abrasador de uma tarde de Verão quase tropical…Corria o vente “leste” vindo das terras áridas do norte de África, como dizem os mais antigos, tornando o ar pesado e quase irrespirável. A tarde adivinhava-se longa, como todas as tardes no pino de Agosto…Escondida na encosta que se estende íngreme até à imensidão do azul do Atlântico, lá estava a Fundação Aldeia da Paz, recentemente designada por Lar da Paz. O portão grande de ferro estava aberto e não deixava antever qualquer vivalma no recinto. Pela vegetação luxuriante seguimos um pequeno caminho que nos conduziu à entrada da casa-mãe. Erguia-se poderosa sobre um conjunto de quatro habitações de dimensões mais reduzidas, num espaço amplo e com uma vista digna de postal.
O silêncio do lugar adequava-se ao momento de contemplação da paisagem deslumbrante de verde e de mar, mas fomos interrompidos por um rapaz que corria desenfreadamente, acabando por desaparecer entre os pinheiros de uma das pequenas colinas que ladeiam a casa. De seguida aparece um jovem a chamar pelo rapaz, que, finalmente, dá pela nossa presença.
Estamos em Água de Pena, no concelho de Machico, na ilha da Madeira. Viemos visitar uma das instituições de solidariedade social que, na última década, mereceu um dos maiores esforços conjuntos da população da ilha para erguer um projecto destinado a acolher crianças e jovens em situações de risco. A Fundação Aldeia da Paz foi inaugurada a 24 de Julho de 1994, estando directamente ligada à Diocese do Funchal. Entregue à direcção de três irmãs pertencentes ao Instituto Missionárias dos Pobres, a Aldeia está vocacionada para acolher rapazes desde tenra idade até aos 18 anos. No final da década de 90 as missionárias abandonaram o projecto e a instituição passou por graves dificuldades financeiras e de gestão. Em 2001 a Diocese do Funchal entregou os destinos do projecto à congregação dos padres Salesianos que, nesse ano, comemoravam 50 anos de presença na região. A Aldeia da Paz acolhe actualmente 35 rapazes oriundos de toda a ilha, todos eles provenientes de famílias desestruturadas e com graves problemas sociais e económicos.
O padre Luciano Miguel, director da instituição há três anos, explica-nos que no início muitas das crianças eram recebidas sem qualquer encaminhamento do Tribunal de Menores. “As pessoas vinham cá pedir às irmãs se podiam receber a criança e ainda temos um ou outro caso à espera de enquadramento legal”, explica o sacerdote, sublinhando que actualmente apenas aceitam crianças devidamente encaminhadas pelas autoridades competentes.
Numa mesa velha, numa pequeno alpendre, um grupo de rapazes entre os 12 e os 14 anos jogam alegremente às cartas. As conversas deambulam entre o ás de copas e o rei de espadas que não foram bem jogados e só a voz de uma auxiliar quebra a tagarelice dos adolescentes. José, chamemos-lhe assim, tem 17 anos e sabe que ao completar a maioridade tem que deixar a Aldeia. Chegou à instituição com apenas 5 anos de idade, acompanhado por dois irmãos, todos retirados à família biológica. De olhos postos na imensidão azul que se estende até ao horizonte, o jovem, de poucas palavras, lá vai dizendo que gosta de estar ali. “Antes não tinha estas condições, o ambiente na minha casa era muito tenso e apertado”, diz-nos, sem tirar os olhos do mar. Apesar de visitar regularmente a mãe, é da madrinha que fala com mais carinho, dizendo que ela e os seus irmãos serão sempre a sua família.
O padre Luciano Miguel explica que a instituição incrementa o relacionamento com a família biológica sempre que possível, apesar de tentarem fazer com que eles “sintam que também têm aqui a família do lar”. Inteiramente dependente dos subsídios da Segurança Social, a Aldeia conta com o trabalho diário de dez auxiliares e duas técnicas superiores. O dia a dia dos meninos começa cedo, logo pelas 6.30h da manhã. As crianças são encaminhadas para as diferentes escolas que frequentam e só estão de regresso à tarde. “Quando chegam da escola têm uma hora de estudo, depois vão para os computadores e de seguida têm tempo para brincar”, explica o sacerdote. Com crianças desde os seis aos 18 anos, os horários das actividades variam consoante a rotina escolar, que, para a grande maioria, passa pelo ensino técnico-profissional. “Muitos destes rapazes têm graves problemas de aprendizagem e têm de ser encaminhados para o ensino profissional”, refere o director da instituição.
José está a frequentar um curso profissional de informática numa escola do Funchal. Até ao nono ano esteve no Colégio dos Salesianos, juntamente com um colega da Aldeia. “Lá tinha muitas condições que numa escola pública não há, mas havia outros rapazes que riam da minha roupa e dos meus sapatos”, relembra o jovem com vergonha, apesar de não querer dar grande importância ao assunto. O director da instituição explica que o grande problema surge em ocupar as crianças em época de férias. “Alguns vão a casa, mas muitos permanecem na instituição. Vamos variando as actividades conforme temos disponibilidade e verba”, explica o sacerdote. A praia é sempre uma alternativa barata e de sucesso, mas todos os dias têm que ser preenchidos. José conta-nos que foi ao Porto, neste Verão. “Fui ao Porto em passeio. Andei de comboio, vi o estádio do Dragão e vi o rio Douro”, afirma com orgulho. A viagem inseriu-se num intercâmbio de instituições particulares de solidariedade social da ilha com a cidade invicta. José foi integrado num grupo de 14 crianças de diversas IPSS da região. “Em geral, vão dois rapazes, aqueles que tiveram melhor aproveitamento escolar ou que demonstraram bom comportamento durante o ano”, diz-nos o padre Luciano Miguel.
O sacerdote explica que a Aldeia é dirigida segundo o próprio lema dos padres Salesianos que assenta em três pilares: razão, religião e carinho. “A criança tem que se sentir amada para poder retribuir com amor”, afirma. “Nesta casa tentamos que estes jovens que foram marginalizados sejam incluídos na sociedade. Ao sábado, por exemplo, levamo-los à paróquia para terem catequese e assistirem à missa integrados na comunidade”, explica o director. “Muitos dos rapazes participam em associações desportivas e treinam futebol ou atletismo. É uma forma de estarem em contacto permanente com a sociedade”. Apesar dos esforços de inclusão, a situação geográfica da Aldeia da Paz potencia por si só isolamento social. “A nossa localização é uma das piores dificuldades que temos”, lamenta o padre Luciano Miguel. “Este local não nos permite grandes alternativas de transporte e incrementa a exclusão destes meninos, dificultando o seu crescimento na comunidade”, afirma o sacerdote.
Célia Gonçalves é psicóloga e está há poucos meses a trabalhar na instituição. Apesar de reconhecer que o seu trabalho ainda está numa fase muito inicial de avaliação das necessidades existentes adianta que “a característica global destes meninos é uma grande desconfiança”. A psicóloga explica que a maior dificuldade que encontra surge quando tenta estabelecer uma relação com cada uma das crianças. “É muito difícil conseguir ganhar a confiança deles. São miúdos que estão há muito tempo institucionalizados e que testam constantemente os nossos limites”, afirma a psicóloga.
Marcelina Carvalho também partilha da mesma opinião de Célia. A auxiliar está há 11 anos na Aldeia da Paz, praticamente desde a abertura, e já fez de tudo um pouco. Marcelina acredita que a casa “está a morrer aos poucos”. “Temos menos meninos, há menos vida”, lamenta a funcionária enquanto continua a passar uma camisa a ferro. Marcelina diz que não existe grande proximidade com os rapazes. “Vêm para cá revoltados e é preciso muita calma para lidar com eles”, afirma, acrescentando que não podem ter uma relação afectiva próxima “porque eles não aceitam bem o carinho que damos”. Apesar desta distância que tacitamente se estabelece, Marcelina lá vai deixando escapar que sente “saudades dos que já se foram” e que é motivo de felicidade quando algum rapaz volta para visitar a Aldeia. “Temos um que está em Londres, e que sempre que vem à Madeira vem cá fazer-nos uma visita”, exemplifica de sorriso nos lábios.
José está à varanda….Olha com carinho o galinheiro, onde um bando de galinhas cacareja indiferente aos pensamentos do rapaz. Para o ano tem de deixar a Aldeia, atinge os 18 anos. O padre Luciano diz-nos que “desde o primeiro dia que uma criança entra na instituição, temos que começar a preparar a sua saída.” José gosta muito de animais… “Antes tínhamos galinhas, coelhos, cabras, codornizes, porquinhos, pombos”, diz-nos alegremente, alheio à mudança de vida que se aproxima. “Tentamos sempre orientá-los para a saída. O futuro pode passar pelo regresso à família, se as condições forem diferentes”, assegura o director. “Ajudamo-los a encontrar uma saída profissional estável e quando não têm para onde ir são encaminhados para a Segurança Social”, explica o padre, assegurando que “ninguém sai daqui e fica debaixo da ponte”. À pergunta “quais são os teus projectos para o futuro”, José responde timidamente: “Gostava de acabar o curso, arranjar um trabalho…Queria ter uma casa grande, uma quinta cheia de animais”. “Para onde vais quando saíres daqui”, perguntamos nós…. “Não sei para onde vou depois, aqui sou feliz”, responde-nos e desaparece para dentro de uma das salas de convívio.
Data de introdução: 2006-11-12