1- No tempo do 1.º Governo do Eng. António Guterres, ouvi contar que alguém perguntara ao então Primeiro Ministro quais seriam as características do eleitor que se reconheceria na sua acção politica - sua, dele, Eng. Guterres.
Ao que o mesmo governante teria respondido: social-democrata na economia e nas relações de trabalho; liberal no funcionamento do sistema politico; conservador em matéria de costumes.
Não sei se é verdadeira a história, ou se é verdadeiro o resumo. Se não é, podia sê-lo.
A matéria dos costumes tem estado relativamente à margem da agenda politica, e do escrutínio do povo.
Tem, no entanto, algum relevo nos corredores e nos recantos das organizações politicas, hoje como no passado.
Por exemplo, a biografia não autorizada de Álvaro Cunhal que José Pacheco Pereira vem publicando - bem como outras versões da história não oficial do Partido Comunista - aponta várias situações, no tempo da resistência anti-fascista, de dirigentes objecto de purgas internas sob a acusação - às vezes levada às páginas do Avante clandestino - de desvio de costumes.
E é do conhecimento geral que, nos partidos da obediência da Internacional Comunista, vigorava a regra moral - embora não fosse seguro o seu acatamento - da chamada “modéstia bolchevique de costumes ".
Muitos dos leitores estarão, aliás, ainda lembrados do discurso “virtuoso" das "mulheres legítimas", que, arrogando-se esse estatuto, procuravam agredir em matéria da sua vida privada Francisco Sá Carneiro e Snu Abecassis, durante uma campanha eleitoral há mais de 20 anos.
2 - Serve este pequeno excurso para lembrar que as matérias dos costumes, ou da moral, e dos comportamentos privados não são, na verdade, questões absolutamente fora das preocupações da vida e do debate político, acompanhando-os, no entanto, e como regra, de modo marginal.
O que a presente campanha eleitoral tem de novo é trazer tais questões para o centro do ruído e do confronto.
É certo que, quando o discurso dos responsáveis políticos passa, por excepção, da insinuação soez para a enunciação de alguns temas - como agora se diz - "fracturantes", surgem à tona assuntos que importaria, na verdade, discutir, e levar a votos.
Fazendo o levantamento das questões que, na última semana, e no sub-texto de intervenções políticas de dois líderes partidários, foram arremessadas aos adversários, temos o seguinte ramalhete: o aborto, a procriação e a família, do lado esquerdo; casamentos homossexuais, adopção de crianças por casais homossexuais, regime fiscal do casamento, clonagem e eutanásia, fertilização "in vitro", do lado direito.
São, aliás, assuntos urgentes: pouco faltará para que a União Europeia, a coberto de uma visão muito elástica e oportunista do princípio da não discriminação, nos imponha em alguns desses domínios a revolução completa do nosso quadro de valores e de referências, uniformizando-nos pelo politicamente correcto modelo nórdico. No essencial, abolindo a relação de conjugalidade heterossexual como cânone da família, e esta como base da organização social.
A Constituição Europeia, que vamos, se formos, referendar será mais um passo nesse caminho.
3 - Tudo boas razões para discutirmos, de forma civilizada, essas questões, enquanto é tempo.
Questões que tocam, de resto, e de bem perto, as preocupações das instituições particulares de solidariedade social: são as i.p.s.s. a instância principal do acolhimento das crianças em risco; foram as i.p.s.s. que se organizaram para oferecer às mulheres com gravidezes indesejadas alternativa ao aborto; a adopção de crianças passa, em grande medida, por i.p.s.s.; a protecção da família é um eixo central da identidade das i.p.s.s..
O que foi curioso foi que, não indo ao fundo da questão, e limitando-se a atirar a pedra e a esconder a mão, quer o Dr. Francisco Louçã quer o Dr. Santana Lopes formularam as suas agressões procurando encostar-se ao sentimento dominante dos eleitores. Encosto particularmente estranho no dirigente do Bloco de Esquerda, já que apareceu como paladino dos princípios mais conservadores.
O risco é que aconteça a algumas destas "gravíssimas questões" voltarem a cair na modorra em que se encontravam, à conta de terem sido afloradas de forma tão canhestra e tão grosseira.
Há boas causas que se perdem por os seus advogados serem fracos.
Como diz o dito popular: "Senhor, livrai-me dos meus amigos …"
* Presidente da Direcção do Centro Social de Ermesinde
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