1 - Durante o Governo de Passos Coelho e Paulo Portas, de 2011 a 2015 – mas principalmente de 2012 a 2014, no decurso da execução do programa de resgate imposto a Portugal pelas instituições internacionais nossas credoras – tal Governo sempre defendeu a necessidade de cumprimento das exigências desse programa, por mais intrusivas que fossem do espaço da nossa soberania e por mais que afectassem os direitos constituídos dos cidadãos.
Tal cumprimento – defendia então o Governo – é que conferiria credibilidade internacional ao nosso País e permitiria estabelecer um clima de confiança nas instituições da troika e nos “mercados” que constituiria condição de sucesso e da “saída limpa”, como lhe chamaram.
Como sabemos, as exigências do programa impunham cortes severos em salários e pensões, com especial punição dos funcionários públicos e dos aposentados da Caixa Geral de Aposentações, bem como a redução de um elenco significativo de prestações sociais, como o Complemento Solidário para Idosos, o RSI, o subsídio de desemprego, o abono de família, as pensões de viuvez…
O confisco de direitos só não foi tão intenso quanto os credores o exigiam e o Governo porfiava, porque em várias ocasiões, e a propósito dos diversos Orçamentos de Estado desse período e legislação avulsa conexa, o Tribunal Constitucional o impediu, por considerar intolerável o esbulho.
O Tribunal Constitucional considerou, em várias medidas legislativas do Governo de então, que tais medidas violavam o princípio da confiança, que é o princípio que se traduz na expectativa que legitimamente se consolida nos cidadãos quanto ao cumprimento pelo Estado das regras do contrato social – e dos contratos particulares que o Estado mantém com cada um de nós.
Várias vezes abordei aqui esse tema, na altura própria, insurgindo-me contra tais medidas e manifestando a minha opinião quanto à inconstitucionalidade delas, como os meus leitores estarão lembrados…
2 – Havia então dois campos, duas perspectivas:
Uma, estribada no Governo e na maioria que o apoiava, que preferia cumprir os contratos com os credores internacionais, relegando para um segundo plano os contratos com os credores internos: os cidadãos.
Na verdade, também um trabalhador do Estado é credor do seu vencimento; também um aposentado ou um reformado são credores da sua pensão.
Não havendo, em sua opinião, possibilidade de cumprir os compromissos internacionais e, simultaneamente, os compromissos internos, o Governo preferiu cumprir aqueles em primeiro lugar.
A segunda perspectiva era a manifestada pelo PS, então na oposição: contratos por contratos, primeiro seria mister o Estado cumprir com os seus nacionais.
Não seria legítimo – proclamava, e bem, o PS – invocar o carácter sagrado dos compromissos, para justificar o cumprimento dos contratos internacionais; esquecendo essa sacralidade no que respeitava aos seus compromissos no plano interno.
“Pacta sunt servanda” – é princípio que vale para todos os contratos.
A expressão popular cunhada por António Costa, durante a campanha eleitoral para as eleições legislativas que conduziram à actual solução de Governo, que resolvi trazer para título da crónica – “Palavra dada é palavra honrada” – resume com grande eficácia essa segunda perspectiva: para o Estado reganhar a confiança da sociedade, tem de cumprir os seus compromissos; com os portugueses primeiro.
O Governo – o novo Governo – haveria de distinguir-se nisso: no cumprimento dos compromissos, no cumprimento dos contratos.
Era a promessa implícita.
Como afirmou António Costa, numa sessão eleitoral em Guimarães: “A primeira coisa que um político tem que saber é que palavra dada tem de ser palavra honrada e é com base nisto que nós reconstruímos a confiança na democracia”.
3 – Nessa mesma sessão eleitoral, o então Secretário-Geral do PS afirmou ainda, exibindo o célebre “caderninho vermelho” que contém o programa eleitoral do PS: “O programa do PS não são palavras que o vento pode levar”
Fui ler esse Programa, na parte que nos diz respeito.
Reproduzo esse (curto) texto:
“Estabilizar e desenvolver a cooperação com o sector solidário”
“O PS, atento ao importante papel desenvolvido pelas organizações não-governamentais da área social, bem como a tradição socialista de reforço da mobilização da sociedade para a promoção da coesão social, continuará a reforçar a cooperação com este setor.
Neste quadro deverá ser dada particular atenção à cooperação com o setor solidário em domínios como o combate a pobreza, a atuação de proximidade no apoio às famílias e às comunidades, e a integração de grupos sujeitos a riscos de marginalização.
O PS proporá com carácter de urgência a renovação do Pacto para a Cooperação e Solidariedade com o horizonte da legislatura e que deverá seguir os seguintes princípios:
• Estabilidade de médio prazo da relação do estado com as instituições sociais;
• Definição de um eficaz quadro operativo do papel regulador das instituições públicas em matéria de cooperação;
• Reforço da prioridade à diferenciação positiva enquanto pilar do modelo de cooperação;
• Garantia da conciliação entre sustentabilidade institucional e acessibilidade aos serviços sociais.”
Aí estão as referências à tradição socialista de reforço da mobilização da sociedade e ao reforço da cooperação, ao Pacto de Cooperação, bem como a explicitação do princípio da estabilidade das políticas públicas no que respeita às relações com o Sector Solidário, como traduções da ideia-forte de António Costa sobre a honradez do cumprimento dos compromissos.
Nem era preciso: os Governos entrantes não é suposto aceitarem o encargo a benefício de inventário, estando antes vinculados e honrar os compromissos anteriores do Estado – mesmo quando não concordem com eles.
O Estado deu a sua palavra – é para cumprir, seja qual for o Governo em funções!
4 – Em 1997, o Estado solicitou às IPSS a adesão destas à Rede Nacional da Educação Pré-Escolar, a fim de lograr o objectivo da universalização da educação pré-escolar das crianças portuguesas.
As IPSS aceitaram a cooperação proposta.
O Ministério da Educação impôs, nessa ocasião, na Lei-Quadro da Educação Pré-Escolar, que os educadores de infância ao serviço das IPSS integrantes dessa Rede deveriam ter remunerações progressivamente aproximadas às dos educadores de infância da rede pública – o que levou à actual situação de injustiça relativa entre as retribuições das demais carreiras profissionais nas IPSS e a carreira docente – nesta, a retribuição é de cerca de 2,5 vezes mais do que naquelas, para idênticas qualificações.
Em contrapartida, o Ministério da Educação indemnizaria as IPSS do aumento da despesa, resultante dessa obrigação contratada.
Ora, nesta matéria, a “tradição socialista”, pelo menos no que respeita ao consulado de José Sócrates, não se recomenda: o seu Governo deixou atrasar o pagamento dessa obrigação durante vários anos, colocando sob ameaça a sustentabilidade de tesouraria de muitas Instituições - situação só regularizada pelo Compromisso de Cooperação 2015/2016.
Mas, pelo caminho em que vamos – ou não vamos - parece que essa má “tradição” se está a querer impor …
Ora, “palavra dada é palavra honrada”.
Henrique Rodrigues – Presidente da Direcção do Centro Social de Ermesinde
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