HENRIQUE RODRIGUES

Uma questão de modas

1 - Não sei se os meus leitores ainda se lembram de um caso judicial, ocorrido há cerca de 10 anos, que moveu, durante largo tempo, o espaço mediático e, induzidas por este, as emoções mais imediatas e as correspondentes exigências de justiça popular, caso esse relativo ao enquadramento familiar de uma criança, a Esmeralda.
Tratava-se de uma criança que, no quadro de separação dos progenitores, tinha sido cedida pela mãe, primitiva titular do poder paternal, a um casal: um sargento e sua mulher.
O pai não tinha sido ouvido nem achado no trato da cedência – e entendeu que, na situação verificada do desinteresse da mãe, era a ele que competia a atribuição do poder paternal.
O tribunal também achou que assim devia ser – e ordenou a entrega da criança ao pai.
Durante anos, andou-se num jogo do gato e do rato, de sucessivas e exitosas tentativas do casal com quem a criança se encontrava, para fugir ao cumprimento da decisão judicial, até que, finalmente, a sentença foi cumprida e a criança foi retirada ao casal e confiada ao pai, como devia ser.
Na época, a imprensa colocou-se quase unanimemente do lado do sargento e contra o pai da criança, conduzindo uma campanha de propaganda e pressão sobre o poder judicial que percorreu e interessou o País durante muito tempo.
Promoveu-se a subscrição nacional de um abaixo-assinado, com recolha de assinaturas até em bombas de gasolina, para defender os “direitos” do casal, a quem a mesma imprensa passou a chamar “pais de afecto” – inovação semântico-antropológica que passou a designar, no registo mediático, o “lado certo”, por contraponto ao desvalorizado “pai biológico”, que a mesma imprensa tratava praticamente como um pai de segunda categoria e um malfeitor – pelo simples “crime” de querer a sua filha consigo.
Até Primeiras-Damas se envolveram então nessa campanha …
Bem sei que elogio em boca própria é vitupério – mas recordo que fui então dos poucos a defender publicamente os direitos do pai e a criticar a manipulação das emoções engendrada pela imprensa; fazendo-o aqui, nas páginas do “Solidariedade”.
Depois da retirada efectiva da criança ao casal e da sua entrega ao pai, isto é, estabelecida a normalidade, os meios de comunicação deixaram de acompanhar o assunto, porque deixou de vender jornais ou de cativar audiências - excepto num ou noutro caso, num jornal mais sério, que nos informou do sucesso do processo de desenvolvimento da criança junto do respectivo pai, comprovando pela prova dos factos posteriores a justeza da decisão judicial.

2 – Nos últimos tempos, questões relativas a retirada de menores da respectiva família natural voltaram ao palco mediático, quer na televisão pública, quer na imprensa escrita.
O menos que se pode dizer é que os “jornalistas” não aprenderam com o tempo – nem com os erros.
Continuam a tratar as medidas de protecção e promoção de direitos das crianças mais de acordo com o aplauso fácil da turba do que com o carácter quase sagrado que tem necessariamente que ter o decretamento de tais medidas.
É como, de alguma forma, o tribunal se substitua a Deus – ou à natureza, conforme as devoções – na definição do lugar que se destina a uma criança para viver e desenvolver a sua personalidade, crescendo “em idade, em sabedoria e em graça”.
Não é terreno para demagogias e populismos …
Verifica-se, no entanto, na actual campanha, que os “jornalistas” adoptaram valorações opostas àquelas de há 10 anos atrás.
Agora, é ao contrário; agora, seriam os direitos dos “pais biológicos” que deveriam prevalecer, sendo exautoradas medidas de retirada de menores da família natural.
Saúda-se a conversão.
Mas ela não é sincera: é apenas porque a história que agora se quer vender se encaixa melhor nesse registo.
Se, por falta de tomada de medidas de protecção, uns filhos fossem conduzidos à morte por um progenitor, os mesmos jornalistas que agora vituperam a tomada de tais medidas e a retirada de menores da família rasgariam as vestes por essas mesmas medidas não terem sido tomadas.
A teoria agora em moda é a seguinte: a Segurança Social quer aumentar o número de crianças retiradas às famílias; os tribunais aceitam e assinam de cruz os relatórios sociais nesse sentido; e as IPSS acolhem essas crianças, num “negócio” que a todos convém.
Vamos por partes:

3 – Andamos todos inquietos com o que se passa nos Estados Unidos, com esse fenómeno inesperado da vitória de Donald Trump, e assustados com as consequências de um registo antidemocrático e hostil a todas as manifestações de oposição ou de controlo.
Nessa medida, também todos nós nos regozijamos e reconhecemos nos embargos com que sucessivas decisões judiciais dos tribunais americanos tentam pôr um travão nas medidas mais agressivas do novo Presidente.
É nessas ocasiões que saudamos, como salvaguarda nossa e das nossas liberdades, a separação dos poderes que constituem a soberania das nações e o controlo das manifestações de excesso de autoridade que entre si levam a efeito – e de que o recente exemplo dos juízes dos Estados Unidos é manifestação exemplar de autonomia.
É o que chamam “cheks and balances”.
Mas cá, é igual!
Também em Portugal os tribunais, nos termos da Constituição, são autónomos e independentes do poder político e da Administração Pública.
Só quem não conhece a tribo pode pensar que os juízes portugueses fazem fretes aos Governos ou alinham em prioridades políticas – se as houvesse …
E têm, no processo de decisão, uma imensa vantagem sobre os “jornalistas” dos agora chamados “factos alternativos”: chegam-lhes os factos todos, no julgamento, e é com eles que decidem.
Não fazem uma apresentação parcelar da realidade, escolhendo apenas os factos que encaixam no guião e criando “factos alternativos”, como o trumpismo, para preencher as falhas da narrativa.
Podem errar, e erram, por vezes, como todos.
Mas não é certamente por serem comandados de fora.
Não se pode saudar as decisões judiciais americanas; e não aplicar os mesmos critérios às nossas.

4 – Melhor fora não ser preciso; mas é hoje consensual a necessidade de, por vezes, e para salvaguarda da sua segurança e do seu direito à vida e à saúde, retirar crianças às respectivas famílias.
(Nunca por motivos económicos estritos.)
E é também uniforme o entendimento – da lei, da Segurança Social, dos Tribunais, das Instituições Solidárias – de que, nesses casos, a prioridade é de restaurar, ou criar as condições, para o regresso das crianças à sua família natural, nos casos de medidas de protecção que lhes tenham sido decretadas.
Ora, a existência de equipamentos sociais como os lares de infância e juventude, ou os centros de acolhimento temporário para crianças, constituem a forma mais adequada de assegurar uma residência a tais crianças durante o período de tempo necessário à restauração das condições que permitam o regresso à família em condições de segurança, com acompanhamento técnico qualificado, sem o risco de criarem vinculações incompatíveis com as que é necessário manter ou cerzir com essa mesma família.
As Instituições não têm, aliás, como qualquer sabe (ou devia saber, antes de atirar a pedra da calúnia), nenhum poder de decisão no processo de encaminhamento das crianças – que são admitidas e retiradas dos lares por decisão externa, judicial ou administrativa, sem qualquer intervenção da Instituição.
É que nem sequer em abstracto é viável pensar em “negócio” a respeito destes casos.
A não ser para quem precisa de aumentar audiências, por viver à custa delas … como o trumpismo.

Henrique Rodrigues (Presidente do Centro Social de Ermesinde)

 

Data de introdução: 2017-03-10



















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